Miguel Ferreira abre o livro: Hospital está a ceder aos lobbies privados

Miguel Ferreira

FN – Como explica a sua saída da direção clínica do hospital, embora se saiba que era o rosto de toda a administração?

MF – O nosso secretário propôs a saída da Dra Sidónia Nunes que estava  a presidir ao conselho, com aquela  resolução do governo a falar em perda de confiança política. Quando sai o presidente, toda a equipa sai.

FN – Não acha que a decisão tomada foi um ajuste de contas consigo ou com a sua sempre contestada gestão?

MF – Não acho. Eu acho que fizemos um trabalho perfeitamente honesto, com um plano evolutivo de proteção e de investimento na formação e nas instalações. Em saúde, se não o fizermos não evoluímos. No início, quando tivemos conversas com o sr presidente do governo, este achou que não havia verbas para avançar com o hospital novo. Nesse caso, optou-se pela  adaptação das instalações e introdução de tecnologia. A medicina não pára  e estávamos a ficar cada vez mais distanciados da boa prática médica. Lentamente, fomos começando a ver quais eram as áreas que careciam de intervenção. Entre o mandato do Dr Almada Cardoso e a minha passagem pelo conselho de administração, conseguimos fazer imensas obras e instalação de equipamentos. Em resultado, e só para ter uma ideia, pagávamos por ano, só em viagens, 130 mil euros por mês, e reduzimos para 20 a 30 mil euros/mês. Isto só no custo de viagens dos doentes ao continente; por ano, baixámos 1 milhão e 200 mil porque passámos a ter colegas com outra capacidade técnica e equipamentos. Começámos também a abrir o dobro de vagas nos internatos complementares e a aceitar acima de 30 médicos na área do ano comum. Portanto, há todo um investimento no número de técnicos, nas instalações e equipamentos que levam anos a dar a volta.

FN – Há médicos que se queixam de terem sido demitidos por telefone quando assumiu a direção hospitalar. A Presidente e o dr, no caso diretor clínico, foram demitidos também por telefone?

MF – Eu não fui demitido. Segundo a orgânica, a única pessoa que é demitida é a presidente e todos nós caímos automaticamente.

FN – Consta que a presidente, Dra Sidónia, foi demitida por telefone?

MF – Foi por telefone e, que eu saiba, nem foi pelo senhor secretário, mas pelo chefe de gabinete. São práticas…

FN – Então parece que as práticas se repetem. Os seus colegas acusaram-no de serem demitidos por telefone…

MF – Isso não corresponde à verdade. Estava no gabinete do então presidente, Dr Almada Cardoso, que tentou falar com os colegas. Falou com dois e explicou a situação. Os outros, porque não se conseguiu falar na altura, ficou decidido que retomávamos as conversas mais tarde. Mas, quando ligaram, já tínhamos ido almoçar. Só que insistiram junto da secretária da administração para que lhes dissesse o tema. Então consideraram-se demitidos por telefone.

FN – Acha que o calendário eleitoral, na véspera das eleições diretas do PSD, influenciou esta mudança no SESARAM?

MF – Não sei. Todos acham estranho, de um momento para o outro, e na véspera das eleições, ser demitida a presidente do conselho. Bom, fomos todos apanhados de surpresa. Sinceramente,  é estranho, no mínimo, mas só o senhor secretário poderá esclarecer isso.

FN – Uma das grandes críticas que lhe fazem é que o setor hospitalar não está pacificado, fruto do seu estilo de gestão muito agressivo, inclusive com perseguição aos colegas.

MF – Isso é ficção científica. Nos tempos em que fiz gestão nunca exigi qualquer marcação para falarem comigo. Falava com qualquer colega ou técnico quando assim era solicitado. Nunca fiz aquilo que os atuais colegas fazem agora, como me dizem que, para falar com colegas, seja no conselho ou direção clínica, é preciso fazer marcação. Também nunca limitei os assuntos como se está a fazer agora, se a marcação é um assunto já não se pode falar de outro. Não há nenhum colega ou técnico que quisesse falar comigo e que eu não tenha permitido.

FN – Sente que sempre teve o apoio dos seus colegas?

MF – Eu sempre tive o apoio de todos os colegas que querem trabalhar, ou seja, dos colegas que não estão interessados em se servir do serviço público como uma ponte para o serviço privado. Sempre tive colegas cada vez mais entusiasmados com o que estávamos a fazer. O centro de simulação clínica é essencial na formação e é o centro do país onde mais formações têm sido feitas. Apetrechámos a neurocirurgia, otorrino, oftalmologia, bloco operatório, cuidados intensivos, no fundo, todos os serviços. Os colegas que colocavam os problemas nós procurávamos dar resposta. Os colegas que estavam interessados em trabalhar e em evoluir sempre me deram apoio.

FN – Quando tomou as rédeas do hospital, que vícios encontrou?

MF – Um hospital que esteve estagnado anos e anos com a conversa do novo hospital, não houve investimento. Estou a trabalhar ali desde 1976 e o hospital abriu em 1974. Conheço bem a sua evolução. À espera do novo hospital, digamos que houve um tempo de paragem que fez com que houvesse um acomodar à situação. A partir do momento em que começámos a pôr o carro a andar, a evoluir, evidente que nada podia ficar como antes.

FN – Então não concorda com uma opinião generalizada dos agentes do setor de que a saúde bateu no fundo na Madeira?

MF – Falso. Só bateu no fundo nalguns órgãos de comunicação social que o anunciaram. Nós tivemos até o reconhecimento de pares da nossa especialidade, temos cartas de felicitação pelos avanços na Madeira, com um nível científico europeu. Só que não foram publicitadas porque não faço esse tipo de publicidade. Mas esse reconhecimento dava-me  uma grande satisfação porque eram figuras de renome nacional e  europeu. Há sempre em todas as especialidades pessoas que não querem sair do seu comodismo porque é cómodo e estão habituadas a não fazer nenhum. Quem não quer estar dentro do hospital porque tem de cumprir um horário de 35 horas, e está habituado a lá estar 20 horas, claro que não está interessado em cumprir.  A última questão que implementámos, aliás por recomendação do ministro saúde que aponta para o controlo da gestão das assiduidades, conforme também recomendação do Tribunal de Contas, não andou. Está tudo parado. Mas porquê? Será o meu mau feitio? Pergunto se os colegas terão controlo de assiduidade.  Qual o controlo que temos neste momento? O problema é saber se todos cumprem o horário que está contratualizado.

FN – Quem lhe tirou a confiança política: o presidente do GR ou o secretário dos assuntos sociais?

MF – Sempre tive um relacionamento com o presidente do GR o mais correto possível. Sempre senti nas conversas que mantive com ele um grande apoio e interesse na evolução que se estava a fazer. Em relação ao secretário, é evidente que não foi bem assim. Foi diferente.

FN – Quem acha que falou mais alto na sua saída? Foram os lobbies, a sua gestão ou mau feitio, o sistema…?

MF – Há variadíssimas coisas que podem estar em causa. De manhã tinha havido uma conversa mais ou menos normal e à tarde tinha havido um telefonema a dizer que a presidente do conselho de administração estava demitida. Portanto, isto só pode acontecer por proposta do secretário e não do presidente do GR. Logicamente que foi o secretário que tomou a iniciativa de propor a demissão do conselho de administração. Ele tem as suas razões, não vou entrar nisso, foi a visão dele e não devo tecer comentários sobre isso.

FN – Temos uma administração hospitalar, de transição, que já esteve nesse lugar, nomeadamente o presidente Mário Rodrigues. Como comenta estas nomeações?

MF – Tenho dificuldade em comentar. Desde que os meus colegas tomaram posse, cumprimentei o presidente casualmente uma vez no hall do hospital e com o diretor clínico, por coincidência do destino, nunca o encontrei desde que está em funções. Sei de coisas pelo que vou vendo e ouvindo de outros colegas. Penso que, em relação ao trajeto que vínhamos seguindo, nomeadamente na área de formação médica, programas de doutoramentos e outros,  tudo isso está completamente estagnado. É o que me dizem, parou completamente. Em relação às próprias instalações, julgo que está em passo normal e não de corrida. Não posso pronunciar-me porque os meus colegas estão lá há pouco tempo. Sei que na área de formação há claramente uma paragem ou estagnação que é preocupante. Nós fizemos um investimento enorme em termos de equipamentos. Ouço agora dizer que é tudo para fazer no privado. Esta mudança seria aceitável se tivéssemos uma dívida zero.  Não é o caso. A dívida da saúde neste momento é grande. Ainda consegui baixar em 150 milhões, em três anos, mas este ano eu estava a arrancar com 480 milhões de dívida, ou seja, mais do dobro do orçamento dado à saúde. Mas o que se vê? Volta tudo para a privada.  O presidente do conselho de administração fez declarações públicas a dizer que estudavam a possibilidade de trazer para a privada  as cirurgias do hospital. Não imagino onde ele vai buscar dinheiro para pagar isso tudo. O que vai acontecer é que não há dinheiro real para pagar mas vamos aumentar a dívida, mas a dívida e os juros pagamos todos nós.

Miguel Ferreira

FN – Está querer dizer que esta administração revela já uma cedência aos lobbies privados?

MF – É nitidamente uma cedência aos lobbies privados. Tentei dar a volta a isso e consegui baixar em 3 anos 150 milhões. Não foi por ser mais esperto que os outros, mas um rigor nas contas, o corte nos esbanjamentos.

FN – Então a saúde é cara…

MF – É cara porque não é controlada. Veja o que está a acontecer neste momento.  Eu fui acusado de, durante a minha gestão, a lista de doentes em lista de espera ter passado de 12 mil para 17 mil. Ainda assim, aos sábados, domingos e feriados operámos 4 mil doentes. Há coisas que não se conseguem ultrapassar. Há muito poucos anestesistas e não há venda de anestesistas. Neste momento, há um elemento muito válido, que era a Dra Henriqueta Reynolds, que requereu a sua reforma e outra colega vai sair da Região. Ora não há omeletas sem ovos. Esta é uma situação que só a médio, longo prazo vai melhorar. Mas não é vindo para os privados que isso se vai resolver. Temos de equacionar uma situação, que é muito importante acompanhar, que é a de saber o número de cirurgias que se está a fazer dentro do hospital num determinado período.

FN – Quando assumiu a administração, queixou-se que havia bons médicos mas que faziam três ou quatro cirurgias por mês. Isto é facto ou despeito?

MF – É uma situação que basta acompanhar e ter em conta as estatísticas. Quando começarem a ver as rentabilidades das várias salas, se é que alguém vai ter acesso a isso, vamos ver os resultados. Já a Dra Leonor Beleza tentou, de uma maneira muito agressiva, resolver o problema. Só quando separarmos o público do privado,  só quando alguém perceber que tem de aumentar eventualmente o ordenado dos médicos para poderem estar satisfeitos e trabalharem exclusivamente no público e não servir-se do público como ponte para o privado para ganhar algum, só nessa altura, separadas as águas, é que se vai pôr fim àquela conversa de fechar uma sala às 12 hs que devia funcionar até às 14 hs, porque entretanto se vai para a privada.

FN – Mas o Dr. também é um médico com interesses na privada.

MF – Nunca e em tempo algum, em quase 40 anos que estou dentro do hospital, não há um doente que me possa acusar que o tirei do hospital para a privada. Digo logo: atenção, se quer ir para a privada, tenho os meus consultórios, apareça lá; está dentro do hospital, trato no hospital. Seja português ou estrangeiro. A prova disso é que me estavam a acusar de estar a dar cabo da privada. Se estou a fazer gestão hospitalar, estou a rentabilizar ao máximo o que é a instituição hospitalar.

FN – Também muito se comentou o facto de ter posto a sua mulher, Dra Isabel Ferreira, na farmácia do hospital, por si protegida, que entretanto já saiu.

MF – Ela foi substituída. Quando cai a administração, toda a equipa cai. Na farmácia, num primeiro ano, baixámos 12 a 13% dos custos, o que mostra bem o seu trabalho. O que acabou foi o estilo de cada um fazer o que lhe apetecia. Não. Há normas que são para seguir.

FN – Está a querer dizer que havia esbanjamentos na farmácia do hospital?

MF – Completamente. Se há normas que dizem que o tratamento de uma patologia é feita de uma certa maneira, se há uma alteração, então se tem justificação é dado o medicamento. Acabou foi a conversa de cada um gastar o que lhe apetecia. Há normas concretas em relação a toda a gente. Inicialmente houve uma reação porque se estava a mexer em interesses diferentes e a pôr fim aos gastos excessivos. Veja o que aconteceu na urgência quando optámos pela prescrição online em unidose. O doente levava os comprimidos necessários a preço de custo do hospital. Não se percebe as declarações de colegas a dizer que a medicação era insegura. Porquê? O mesmo medicamento trata o doente dentro do hospital e à porta perdeu o seu efeito? Perdeu o efeito talvez outros interesses privados. Talvez não tenha havido a capacidade de haver um congresso aqui e acolá… talvez acabassem com esse tipo de convites porque a influência direta de prescrever abertamente se calhar não dava para ir a Nova Iorque, mas a um lugarzinho mais próximo. O medicamento é que não perde o efeito. Mesmo quando as farmácias começaram a protestar, tenho de dar a palmatória e reconhecer aqui a boa iniciativa do senhor secretário, de pedir ao Infarmed uma auditoria. Os 2 inspetores externos que passaram a pente fino as farmácias deram-nos os parabéns dizendo que não imaginavam que tínhamos as coisas tão seguras e eficazes e disseram-se embaixadores do nosso sistema a nível nacional. Mas isso não se publicita porque não interessa. Foi o próprio Infarmed a reconhecer a segurança de todos os procedimentos e da medicação que se estava a dar a todos os doentes. Isto prova que há muitos interesses por detrás  das polémicas criadas, que foi denegrindo, através da comunicação social que não percebe nada destas coisas, e criando um ambiente desfavorável. Mas a população nunca esteve tão protegida nem nunca teve tanta tecnologia e segurança no hospital como quando estávamos a trabalhar.

FN – E agora Dr. Miguel Ferreira ?

MF – Retomo as minhas funções na área de ginecologia com a maior naturalidade porque sei que os cargos valem o que valem.

FN – Receia enfrentar os colegas? Tem tido alguma animosidade da parte dos seus pares, após ter sido afastado da direção clínica?

MF – Absolutamente nada. Tenho circulado como sempre circulei ao longo de todo o tempo, dentro do hospital. de forma calma e serena. É evidente que Deus nosso Senhor não agradou a gregos e troianos e também  não vou ser eu a agradar a todos. Há reuniões que deixei de fazer. Se faço reuniões com seis, tenho seis sentenças. Estávamos a manhã a discutir o sexo dos anjos. Eu falava com os colegas, estava muito atento, escutava os colegas e tomava decisões. Esta conversa do diálogo, diálogo, diálogo… Se há muita conversa não há trabalho. Eu mostrei que fiz imenso trabalho. Não tenho é tempo para conversas arrastadas porque é preciso trabalhar. Conversei e ouvi, a todos os níveis, os colegas, inclusive o pessoal que nunca teve visibilidade, mas depois decidia.

FN – Se voltasse atrás faria a mesma coisa?

MF – Faria. Aquilo que fizemos foi tentar dar resposta certinha e capaz e desenvolver o projeto da Universidade da Madeira porque iriamos ter uma qualidade de medicina acima do nível que temos agora. Tinha contactos para pôr a Madeira com uma capacidade técnica e científica que nada tem a ver com o que se passa cá. Faz-me pena porque é um projeto que não vejo ser seguido por quem está agora a gerir e não faço ideia de quem virá a seguir.