Luís Rocha (texto e fotos)
Na Rua João de Deus, no centro do Funchal, há muitas décadas que subsiste uma das lojas de referência do turismo madeirense. Nem a mudança do antigo turismo de qualidade para o turismo “jovem” e barato, nem a pandemia, nem os assaltos, nem os muitos sem-abrigo que à noite penetram no recinto e fazem dele o seu “quintal” determinaram o fim deste local. O proprietário bem sabe a preciosidade que ali tem e os visitantes não ficam desiludidos com as propostas do espaço. Em cima, de bordados a souvenirs, uma pletora de produtos ocupa o amplo espaço do edifício da antiga igreja protestante onde está situado o “Armazém Universal/Universal Store”. Um espaço, só por si, curioso e atraente.
Mas é na cave, onde se entra por uma porta lateral, que está localizado o “santo dos Santos”, ou antes, como lhe chamam os turistas, “a gruta de Ali Babá”. Lá em baixo, esconde-se uma adega notável, com as paredes pintadas com lagares e outros temas alusivos, e grandes colecções de garrafas de preciosos e antigos vinhos da Madeira e do Porto, para não mencionar as aguardentes.
Segundo nos conta João Freitas Gomes de Sousa, dono da loja, o pastor da igreja protestante onde hoje está situado o estabelecimento comercial empenhou ali o seu esforço, dedicação e dinheiro, mas falhou uma prestação do empréstimo bancário e foi-lhe acionada a dívida. O espaço esteve fechado alguns anos, recorda-se, entre a década de 50 e o ano de 1965. O prédio foi à praça e foi arrematado por um senhor que era dono de um hotel na Camacha e detinha outros interesses nessa localidade. “Já não me lembro do nome dele”, confessa. “Mas o filho dele era o dr. Alfredo Maria Rodrigues, que era clínico nesse tempo na Segurança Social, e delegado de Saúde no Caniço”.
Entretanto, e como já havia algumas lojas na periferia, houve um interessado que quis arranjar uma loja de distinção concorrente das mesmas, mas o dinheiro não chegava… Pediu emprestado a algumas pessoas, mas também não conseguia pagar. “Custa muito dinheiro fazer uma loja”, recorda o nosso interlocutor.
“Meu pai emprestou-lhe dinheiro, mas ele não pagou. Então meu pai tomou conta da loja, e fizeram uma firma nova, com 3 sócios, meu pai, o Andrade, e o Nunes. Ainda hoje o nome da firma é “Andrade, Sousa e Nunes, Lda.” José Lino de Andrade tinha oficinas de automóveis na zona da fortaleza de São Tiago, e o Nunes tinha vindo da Venezuela, casado com uma afilhada do Sr. Andrade.
Nessa altura, o Sr. Nunes esteve ali para tomar conta do negócio, “mas não deu conta” do mesmo. Na altura, João Freitas Sousa trabalhava no restaurante Campo Grande, situado no Almirante Reis. “Meu pai convidou-me para vir aqui orientar isto”, relembra. “E eu vim”, conclui, “em 1967”.
Desde então que, há 54 anos, se mantém firmemente ao leme dos destinos desta loja singular. “Arranjei as cantarias, arranjei tudo, pus isto tudo cheio de garrafas de vinho… O meu pai tinha dinheiro e emprestava-mo. E assim ia pagando os fornecedores”.
O resultado da sua gestão cuidadosa está à vista, num estabelecimento comercial que dobrou já o meio século e continua a ser um caso de sucesso, devidamente referenciado pelos guias turísticos locais e por aqueles que mais intimamente trabalham com turistas com certo gosto, em especial pelos vinhos, e algum poder de compra.
“Dentro das lojas de souvenirs”, salienta o Sr. Sousa, esta é das mais antigas do Funchal, não há outra como ela. É considerada pela Câmara do Funchal como “loja histórica”, orgulha-se.
Mais tarde, o seu pai adquiriu a quota de Nunes, e ele e a de José Lino de Andrade. “Ficámos só meu pai e eu, sócios. Depois do meu pai falecer, ficou para mim e uma irmã que eu tenho, Lina Freitas Gomes de Sousa, e que aqui trabalhou muitos anos. Agora já não o faz”.
Antigamente, recorda, vendia-se ali muita obra de vimes. Mandava vir mobílias inteiras da Camacha, que vendia a passageiros dos navios de cruzeiro que aportavam no Funchal. Aliás, nessa altura o Sr. Sousa deslocava-se aos mesmos, distribuindo folhetos do seu estabelecimento, onde se anunciavam em três línguas “bordados e tapeçarias da Madeira” e “artigos regionais portugueses”.
Foi pioneiro também na aceitação de cartões de crédito, a começar pelo “American Express” que, assevera, foi o primeiro do género a ser utilizado entre nós. Visa, Diners Club, Mastercard em breve foram somados aos cartões que valiam dinheiro na loja.
“American Express foi o primeiro cartão introduzido na ilha da Madeira. Foram para cinco casas: Universal Store, Patrício Gouveia, Maison Blanche, Reid´s e Savoy”, lembra.
Nascido em 1941, dobrada a barreira dos oitenta anos de idade, ainda é possível encontrar João de Freitas Sousa todos os dias na sua loja à Rua João de Deus, frente à Escola Secundária Francisco Franco. Está em boa forma e a sua personalidade calma mas dinâmica continua a ser a alma do local. Quanto era mais novo, mantinha a loja aberta até às 19 horas e ainda ia trabalhar para a restauração. “Tinha força”, refere.
Chegou a ter nove empregados a trabalhar na loja. Em bordados e obra de vimes (algo que entretanto praticamente se extinguiu entre nós) vendia numerosas peças aos turistas, principalmente aos que visitavam a Madeira em navios. Mobílias inteiras de vimes eram levadas nos antigos paquetes, por esses turistas endinheirados, bem como caras toalhas de bordado Madeira. Também vendia muito artesanato, em particular os típicos “brinquinhos” madeirenses, com os quais “punha os turistas todos a dançar”.
Hoje os tempos são outros, mais modestos. Qual é o segredo da sobrevivência? O Sr. Sousa resume-o: “É ir vendendo, e o que se vende compra-se”, diz, para depois se vender novamente. Se o dinheiro chegar só para uma compra-se uma, senão compra-se duas, para fazer “stock”. E com parte da luz vai pagando as despesas, a renda, a água, a luz, a contabilidade. Mas é necessária, diz, uma gestão cuidada.
O espaço em si não lhe pertence, é arrendado há muitos anos. Hoje é propriedade da banca, onde deposita todos os meses o respectivo pagamento. Mesmo assim, investiu muito na transformação e melhoramento do lugar. E ainda se queixa de alguns problemas na cave: com a construção de um prédio contíguo, no local onde se encontrava uma pequena quinta que fazia esquina com a Travessa do Rego, afunilaram um ribeiro subterrâneo que corre por baixo do pavimento e vai desaguar na Ribeira de João Gomes. “Já tive muitos problemas com ele. Quando chove muito, há grandes inundações, a água levanta o soalho e isto fica inundado. A minha sorte é que tenho ali um quintal, por onde depois sai a água. Ela nasce aqui por baixo, o ribeiro foi estrangulado”.
Até agora, a maior dificuldade que teve no negócio, foi com a pandemia da Covid-19, há dois anos. Antes não. O negócio fluía normalmente, com táxis, tuk-tuks e guias turísticos a trazerem-lhe sempre clientes. “Sempre mantive bons contactos com as pessoas que trabalhavam no turismo”, recorda.
Esta loja foi também pioneira em oferecer provas de vinho e um pedacito de bolo de mel, todo o ano. “Antigamente o bolo de mel só se vendia no Natal”, diz o Sr. Sousa. “Mas eu dava-o todo o ano, e tinha sucesso”. Recebia bem, com ofertas gratuitas, sem levar qualquer importância. “As pessoas saem bem impressionadas e quando regressam, voltam cá”, confidencia-nos. Ou então, fazem boa publicidade, da forma mais eficaz e barata: de boca em boca, recomendando o estabelecimento a amigos e familiares.
“Isto funciona muito pelo passa-palavra, pelo bem receber”, vinca. Os vimes é algo que recorda com saudade: era dos maiores compradores, no seu tempo, e fornecia-os aos hóspedes de hotéis como a Matur, o Inter-Atlas, o Sheraton, etc.
Os vimes, infelizmente, foi um sector que “passou a nada”. Mas um propecto que nos mostra, de como era a loja nos anos 70, dá bem conta da relevância que a obra de vimes tinha nas vendas aos turistas de então.
A pandemia, como dissemos, afectou-lhe o negócio, mas não de modo muito significativo. “Pedi um apoiozinho no banco, a Segurança Social reduziu qualquer coisa…”. Mas não chegou sequer a receber apoios governamentais ou de outro género.
Hoje em dia, o movimento de pessoas é algo errático. Depende dos dias. “Há dias em que posso ter vinte, trinta, cinquenta visitantes”, informa-nos. “Mas muitos não compram”. Já lá foram os dias em que se faziam grandes vendas, de bordados, de vimes.
Hoje lida com outros problemas, além das vendas escassas e do ribeiro que lhe causa danos. A multiplicação de sem-abrigo no centro do Funchal criou-lhe outros aborrecimentos. Acontece que a sua casa comercial oferece, na sua entrada, um espaço ideal para que muitos ali instalem “acampamento” para pernoitar, consumir bebidas ou drogas durante a noite.
“Uma vez fui agredido, Estava a acordar um tipo que estava a dormir e ele deu-me três pontapés na cabeça”, confessa. “Foi um problema grave, mas a única ocorrência do género”. Ocorreu há uns três anos. De resto, não tem tido problemas de maior. “Lido bem com eles. Peço-lhes “faz favor, levante-se”, e às vezes ainda lhes dou uma moedinha”.
A maior parte dos sem-abrigo, diz, não é agressiva. Mas já foi assaltado várias vezes e as montras já foram várias vezes partidas e os seus produtos roubados. Por outro lado, os indesejáveis visitantes deixam-lhe muitas vezes os seus dejectos à porta… “Tenho de varrer, tenho de deitar lixívia”.
Questionámo-lo: o Governo Regional diz que o turismo da Madeira atravessa hoje em dia uma situação excelente, com grandes taxas de ocupação hoteleira… “E talvez também na restauração, melhorou um pouco”, comenta.
Mas o turismo da RAM passou a ser “muito mais jovem”, e com menor poder económico, ou interesse em comprar produtos da Região.
“Só compram coisas pequenas, com pouco valor. Um terço do que compravam antes”. Todavia, continua a ser o suficiente para sobreviver e manter a loja.
“Um compra-me um cesto, outro uma garrafa de vinho… Mas já não entra um cliente que compre uma toalha bordada por mil dólares ou quinhentas libras, como noutros tempos… nada disso!”, refere.
Hoje, no local, mantém-se de serviço o Sr. Sousa, a sua esposa e uma empregada. E ali se mantêm ainda, teimosamente, sinais de outros tempos, como a pequena caixa de correio vermelha à porta, onde os turistas podiam depositar os seus postais para enviar a familiares e amigos, depois de os terem ali comprado. E o Sr. Sousa até lhes vendia os selos.