“Falo de viagens com energia nas palavras / falo de turbilhões de casas / e de perturbantes rostos.” Estas frases fazem parte dum pequeno texto que escrevi há uns anos sobre a primeira viagem de combóio que me levou até Coimbra. De Coimbra colhi o fruto de alguns saberes e imaginações. Deliciaram-me as imagens bucólicas das pequenas moradias e dum vasto laranjal nas proximidades da estação ferroviária. O brilho dos verdes e a promessa da farta colheita inspiraram-me alguns motivos de bom augúrio. Depois dessa viagem outras rotas me levaram a novas fronteiras, essas que se tornaram, para além do horizonte físico, no móbil necessário para ir, não até um ponto de chegada, mas até um ponto de partida. Parte-se para chegar e, quando se chega, de novo o mundo nos apela para a viagem no lugar, que nos conduz pelo rosto das ruas e das gentes. Ainda que o mosteiro medieval, o palácio neoclássico ou o museu contemporâneo preencham os nossos roteiros, o povo que passa nas ruas transporta uma história desconhecida que esconde as profusas dimensões da vida, alegrias e desventuras, lazeres e canseiras, silêncios e clamores, lutas e conformações. No entanto estas são viagens que nos são vedadas e apenas poderemos imaginá-las quando a sedução do romance nos toca numa fibra especial do instinto e nos envolve em todos os caminhos.
O que agora me pede esta crónica é a minha chegada a Paris a 13 de Julho de 2015. Paris, a bela, inteligente, radiosa cidade-luz que hoje não me fala de romance nem do poder da imaginação. Hoje, que sabemos o que é o “ mito”, sabemos também que a imaginação nos atraiçoa e desfigura a realidade. Ou é o tempo que revela a mudança e nos esclarece ou nos confunde, ou são os factos que doutra maneira nos falam.
O que digo é o que os meus olhos viram e a lembrança me trouxe no confronto entre épocas dispares: Barbès- Rochechouart é um boulevard que percorri diariamente durante duas semanas no ano de 1969. Uma memória familiar. Uma via que se cruza com o Boulevard de La Chapelle, referenciada por um viaduto de ferro que contém ainda a estação do Metro de superfície com o mesmo nome e se estendia larga, longa e limpa nessa época do meu primeiro encontro com a cidade. A Rue de La Chapelle , porta de entrada de Paris a quem chega pelo aeroporto Charles de Gaulle, ocupa o lugar da antiga estrada romana que ligava Lutèce a Calais e às cidades do norte, passando pela zona de Saint-Denis. Constitui-se como eixo histórico e é uma Estrada Nacional que se prolonga pela actual Route du Nord . Seria de esperar que, mantendo a dignidade que o nome lhe impõe, continuasse a fazer honra ao seu estatuto de origem.
Paris de 2015 mostra-me por fim todo o descalabro do mundo que expulsa os povos de suas fronteiras naturais e os remete para a revelia da vida. Os que chegam aqui sem futuro e sem norte, fugidos da guerra e do absurdo, encontram abrigo nos viadutos das grandes avenidas, porque essas são as vias que oferecem generosamente a sua sombra aos desprotegidos e escorraçados que se acolhem na estação Barbès, tentando os possíveis meios de vida, permutando trabalhos e negócios. São multidões cinzentas, enxovalhadas, contendo, nalguns casos o tédio, noutros o desespero. Em extensas filas , ou comprimidas, aos montes, procuram adquirir da comida exposta às moscas e ao pó, arrumada em volumosas travessas, no grande “Bazar d` alimentación” construído ao longo do Boulevard. Ordeiramente esperam. Mas há ansiedade nos rostos contraídos. E há os que dormem engolfados em desconforto e imundície sob os viadutos da Rue de La Chapelle. Carga humana que acentua a culpa dos países ineptos, fanáticos e violentos, miséria que se confronta com certas economias de luxo visíveis nos países mais afortunados. Até quando se manterá esta espera resignada ? Percebo, por dentro dela, um foco de convulsão.
A nós, os que passamos, a contar minuciosamente os parcos recursos que nos permitem, apesar de tudo, a viagem alegre e tranquilamente ambicionada, este panorama desolador deixa-nos uma angústia velada e um travo amargo de incertezas.
Para onde vai o mundo ? Que viagem ? Que chegada ? Que cidade-luz ?
Paris encanta-nos. Paris entristece-nos.