
(Foto: monumentosdesaparecidos.blogspot.com)
É o reflexo dos tempos. A crise, que afeta empresas e lançou o pânico nas bolsas mundiais, também vai chegando aos domínios da fé.
No dia em que os carreiros comemoram a sua novena de preparação para a Festa de Nossa Senhora do Monte, não se fazem contas terrenas, é certo. O momento é de agradecer as graças divinas, pois a devoção é algo que não tem preço.
Os homens do chapéu de palha e das botas com sola de pneu não deslizam na força espiritual nem na vontade em manter viva uma tradição com muitos anos. No entanto, os tempos de contenção obrigam a pôr travão nas despesas. Este ano, haverá menos gastos em flores, fogo e bebida. Algo que não desanima este grupo profissional. Em contrapartida, prometem compensar na animação e na devoção a Nossa Senhora. “Temos de valorizar a parte espiritual, a fé. Isso é que conta”, sublinha Armando Vieira, um dos 150 carreiros do Monte no ativo.

Os carreiros são um grupo profissional único, característico da ilha da Madeira, e tão populares como os carros de cesto que fazem deslizar pelo Caminho do Monte, a força de pulso e com a mestria de uma arte passada de pais para filhos. São conhecidos pela tenacidade e arrojo, mas também pela sua devoção à padroeira da ilha da Madeira, a quem pedem proteção de cada vez que se lançam, encosta abaixo, a uma velocidade de 40 km/hora, segurando a sua própria vida e a dos turistas.

Ao logo do ano, parte da receita obtida no negócio dos carros de cesto é reservada para a novena dos “Carreiros”, uma das mais esperadas e concorridas. Por que o fazem, é coisa que não se explica, diz Armando Vieira. “Olhe, é a fé e a vontade em continuar uma tradição que vem dos nossos antepassados. É quase uma obrigação que temos para com a Nossa Senhora. Não faz sentido a Festa do Monte sem a novena para agradecer as graças alcançadas e a proteção divina”.
Cumpre-se hoje a sétima das nove festas de preparação da solenidade de Nossa Senhora do Monte e a tradição impõe-se. O dia é de trabalho normal, na azáfama da viagens de carro de cesto, mas logo pela manhã uma equipa de carreiros e familiares estará ocupada na decoração da igreja, inaugurada em 1818 e onde se encontra sepultado o Imperador Carlos I da Áustria. As flores serão todas brancas. Perto de 3 mil agapantos (vulgarmente conhecidos por coroas-de-henrique) vão encher o templo em sinal de veneração à Virgem.
Depois, ao meio-dia, será vez do fogo de estalo a chamar os fiéis até ao cimo da montanha. Durante a tarde, o largo junto à Casa dos Carreiros começa a compor-se de gente e de música. O acordes estarão a cargo do conjunto “Os amigos da música” que tocarão especialmente para esta novena.

Ao fim da tarde, por volta das 18h00, é tempo de repetir um dos rituais mais sentidos da festa. Os homens de camisa e calças brancas rumam, em procissão, até ao cemitério das Babosas para prestar homenagem aos colegas já falecidos. Um gesto de reconhecimento pelos que também contribuíram para manter viva a profissão de carreiro.
Às 20h00, como é habitual, haverá a celebração da eucaristia, presidida uma vez mais pelo cónego Vítor Gomes. A escolha do sacerdote é da equipa organizadora de cada novena. A opção pelo pároco da Sé traduz o agradecimento pelo seu trabalho e dedicação enquanto pastor na paróquia do Monte. A cerimónia é antecedida de orações especiais, ladainha e invocação ao Espírito Santo, um ritual que se repete em todas as missas que antecedem a festa.
Cumprida a parte religiosa, a noite abre-se à animação. Em redor da igreja do Monte, nas escadarias, jardins e cafés, será possível vivenciar o verdadeiro arraial madeirense, com as barracas de brinquedos e de comes e bebes, a espetada, o bolo do caco e os conjuntos musicais. E quando a noite já estiver avançada, o céu vai encher-se de brilho. O fogo de artifício, esta noite, pelas 23h00, fechará em grande mais uma novena dos “Carreiros”.
Amanhã e depois, regressa o ritual com as novenas da “Boa Vontade” e da “Boa Fé”, as últimas antes da véspera do Monte e da grande Romaria em honra de Nossa Senhora. Será a vez, então, dos sítios da Levada da Corujeira, Casa Branca, Marmeleiros, Tanque, Til, Pinheiro, Corujeira de Dentro, Corujeira de Fora, Eira do Lombo e Porta do Rodrigo mostrarem a sua devoção.
Dia 15, a Festa de Nossa Senhora do Monte, dos romeiros, da procissão, dos círios e das promessas, assinala a expressão genuína da religiosidade madeirense, a associar-se à solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. A missa presidida pelo bispo D. António Carrilho marca o culminar de quase duas semanas de intensa fé e dedicação.
Para o ano, fica a certeza de que os carreiros lá estarão a cumprir a tradição. Ou não fossem eles a imagem do Monte, do património da Madeira e da memória coletiva de um povo.