Novena dos “Carreiros” corta nas despesas mas não poupa em devoção

Comboio no ano de 1906  (Foto: monumentosdesaparecidos.blogspot.com)
Comboio no ano de 1906
(Foto: monumentosdesaparecidos.blogspot.com)

É o reflexo dos tempos. A crise, que afeta empresas e lançou o pânico nas bolsas mundiais, também vai chegando aos domínios da fé.

No dia em que os carreiros comemoram a sua novena de preparação para a Festa de Nossa Senhora do Monte, não se fazem contas terrenas, é certo. O momento é de agradecer as graças divinas, pois a devoção é algo que não tem preço.

Os homens do chapéu de palha e das botas com sola de pneu não deslizam na força espiritual nem na vontade em manter viva uma tradição com muitos anos. No entanto, os tempos de contenção obrigam a pôr travão nas despesas. Este ano, haverá menos gastos em flores, fogo e bebida. Algo que não desanima este grupo profissional. Em contrapartida, prometem compensar na animação e na devoção a Nossa Senhora. “Temos de valorizar a parte espiritual, a fé. Isso é que conta”, sublinha Armando Vieira, um dos 150 carreiros do Monte no ativo.

Imagem retirada do site http://www1.cm-funchal.pt/
Imagem retirada do site http://www1.cm-funchal.pt/

Os carreiros são um grupo profissional único, característico da ilha da Madeira, e tão populares como os carros de cesto que fazem deslizar pelo Caminho do Monte, a força de pulso e com a mestria de uma arte passada de pais para filhos. São conhecidos pela tenacidade e arrojo, mas também pela sua devoção à padroeira da ilha da Madeira, a quem pedem proteção de cada vez que se lançam, encosta abaixo, a uma velocidade de 40 km/hora, segurando a sua própria vida e a dos turistas.

Por estes dias, todos os caminhos vão dar ao Monte.
Por estes dias, todos os caminhos vão dar ao Monte.

Ao logo do ano, parte da receita obtida no negócio dos carros de cesto é reservada para a novena dos “Carreiros”, uma das mais esperadas e concorridas. Por que o fazem, é coisa que não se explica, diz Armando Vieira.  “Olhe, é a fé e a vontade em continuar uma tradição que vem dos nossos antepassados. É quase uma obrigação que temos para com a Nossa Senhora. Não faz sentido a Festa do Monte sem a novena para agradecer as graças alcançadas e a proteção divina”.

Cumpre-se hoje a sétima das nove festas de preparação da solenidade de Nossa Senhora do Monte e a tradição impõe-se. O dia é de trabalho normal, na azáfama da viagens de carro de cesto, mas logo pela manhã uma equipa de carreiros e familiares estará ocupada na decoração da igreja, inaugurada em 1818 e onde se encontra sepultado o Imperador Carlos I da Áustria.  As flores serão todas brancas. Perto de 3 mil agapantos (vulgarmente conhecidos por coroas-de-henrique) vão encher o templo em sinal de veneração à Virgem.

Depois, ao meio-dia, será vez do fogo de estalo a chamar os fiéis até ao cimo da montanha. Durante a tarde, o largo junto à Casa dos Carreiros começa a compor-se de gente e de música. O acordes estarão a cargo do conjunto “Os amigos da música” que tocarão especialmente para esta novena.

Foto Rui Marote
Os homens dos carros de cesto fazem parte da paisagem da freguesia. (Foto Rui Marote)

Ao fim da tarde, por volta das 18h00, é tempo de repetir um dos rituais mais sentidos da festa. Os homens de camisa e calças brancas rumam, em procissão, até ao cemitério das Babosas para prestar homenagem aos colegas já falecidos. Um gesto de reconhecimento pelos que também contribuíram para manter viva a profissão de carreiro.
Às 20h00, como é habitual, haverá a celebração da eucaristia, presidida uma vez mais pelo cónego Vítor Gomes. A escolha do sacerdote é da equipa organizadora de cada novena. A opção pelo pároco da Sé traduz o agradecimento pelo seu trabalho e dedicação enquanto pastor na paróquia do Monte. A cerimónia é antecedida de orações especiais, ladainha e invocação ao Espírito Santo, um ritual que se repete em todas as missas que antecedem a festa.

Cumprida a parte religiosa, a noite abre-se à animação. Em redor da igreja do Monte, nas escadarias, jardins e cafés, será possível vivenciar o verdadeiro arraial madeirense, com as barracas de brinquedos e de comes e bebes, a espetada, o bolo do caco e os conjuntos musicais. E quando a noite já estiver avançada, o céu vai encher-se de brilho. O fogo de artifício, esta noite, pelas 23h00, fechará em grande mais uma novena dos “Carreiros”.

Amanhã e depois, regressa o ritual com as novenas da “Boa Vontade” e da “Boa Fé”, as últimas antes da véspera do Monte e da grande Romaria em honra de Nossa Senhora. Será a vez, então, dos sítios da Levada da Corujeira, Casa Branca, Marmeleiros, Tanque, Til, Pinheiro, Corujeira de Dentro, Corujeira de Fora, Eira do Lombo e Porta do Rodrigo mostrarem a sua devoção.

Dia 15, a Festa de Nossa Senhora do Monte, dos romeiros, da procissão, dos círios e das promessas, assinala a expressão genuína da religiosidade madeirense, a associar-se à solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. A missa presidida pelo bispo D. António Carrilho marca o culminar de quase duas semanas de intensa fé e dedicação.

Para o ano, fica a certeza de que os carreiros lá estarão a cumprir a tradição. Ou não fossem eles a imagem do Monte, do património da Madeira e da memória coletiva de um povo.