Património de Aragão vai a leilão

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Num momento em que os leilões tentam reconquistar o fulgor de outrora, o espólio do historiador madeirense António Aragão vai a leilão. A licitação está agendada para 21 de fevereiro, no Funchal, pela mão da Agência de Leilões da Mouraria.

Pelas 15 horas de sábado, quando meia cidade aproveita o ócio do fim de semana, eis que umas dezenas de curiosos se dirigem para o número 38 da Rua da Mouraria. A informação afixada na vitrine de uma das lojas dá conta do renascer de uma atividade de outras eras: vai haver arrematação ou, como é mais conhecido, um leilão. Todos buscam uma boa oportunidade de negócio que, para alguns colecionadores significa uma peça de qualidade a baixo custo.

O leiloeiro aguarda pelos clientes. Desta vez, não esconde o entusiasmo com o grande evento que se aproxima: leiloar o vasto e riquíssimo espólio daquele que foi o escritor, historiador e diretor do Arquivo Distrital do Funchal, António Aragão. “É uma forma de a família prestar homenagem ao homem”, assim explica Ricardo Fernandes venda da obra do espólio de Aragão. Neste momento, procura um espaço igualmente nobre para promover o acontecimento. O ideal seria um dos bonitos museus do Funchal, mas está ainda em contactos para avançar a 21 de fevereiro.

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Ricardo Fernandes passou a sua juventude a servir o famoso Leilão Chagas. Cruzou-se com gente apaixonada por peças tão ricas quanto antigas, em que a história das licitações se cruza com o requinte das peças. Testemunhou retalhos de vidas intrinsecamente ligados a espólios dispensados pelas mais nobres famílias. Assistiu também à abertura das grandes superfícies, ao comércio dos prefabricados a baixo custo e, por conseguinte, ao agonizar dos leilões. Era mais fácil, mais prático e seguramente mais moderno comprar nos hipermercados dos móveis. A qualidade e requinte foram secundarizados pelo lado prático do consumidor, mais tentado pelas modas, ainda que efémeras e sem valor histórico.

Os leilões passaram a realizar-se com menos regularidade e só frequentados por uma clientela muito seleta que procurava o mobiliário de outras eras a bom preço. Mas a crise económica encarregou-se de pregar partidas a muita gente, rica e pobre. Eis que os leilões, fruto da difícil conjuntura e do aperto às famílias ou então da necessidade de se desfazer dos excessos da casa, leva-as cada vez mais a comercializar os seus bens também pela via do leilão.

O processo, segundo explica Ricardo Fernandes, repete-se: contactam previamente a agência, definem um preço e aguardam pela arrematação. A agência fica com 15% do valor da peça licitada. Há os frequentadores habituais que preferem dar uma vista de olhos pela loja, namorar as peças em leilão, enfeitadas com o respetivo número, para já comprá-las no dia agendado.

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Este leiloeiro deixa claro que, hoje em dia, ricos e pobres levam a leilão peças. Uns que se querem desfazer dos excessos de casa e outros por carência económica. Por isso, desde peças sacras, a mobiliário de vinhático, a telas e serigrafias, tudo está ao dispor do comprador. Tudo desde um euro a cerca de três mil euros. Os leiloeiros confessam que este trabalho também os ajuda à sobrevivência diária.

As peças, escurecidas pelo peso dos anos, ofuscadas pelas tendências modernas, adormecem nos recantos do Leilão da Mouraria à espera de regressarem a um lar. Curiosamente, muitos são os turistas que trocam o passeio pela ilha turística para uma visita ao leilão e até licitam peças variadas. Uns escolhem duas dúzias de copos festivos da antiga Casa Cayres pela módica quantia de 20 euros, enquanto outros optam por uma peça de vinhático, outrora a mil euros e hoje vendida pela boa quantia de 100 euros.

Toca a sineta. Ricardo Fernandes sobe ao estrado e dá ordem de partida ao leilão. A multidão arruma-se numa improvisada sala que acolhe uma panóplia de artigos. “Louceiro, antigo, em nogueira com pedra mármore, 600 euros…” Silêncio. O elevado custo não galvaniza a audiência. O leiloeiro replica: “Vou entregar!”. E toca a sineta. Por outras palavras, a peça continua por vender. Retoma-se a toada da licitação: “Garrafa inglesa em cristal, 10 euros”. Um cliente rasga a multidão e põe o braço no ar a mostrar interesse. Ninguém concorre. O leiloeiro dá a sentença final: “Vendida!”. Os compradores só poderão levantar as peças na segunda feira seguinte e são vendidas sem direito a reclamação posterior ou anulações de compra.

Ricardo Fernandes tem bem consciência que as entidades oficiais nunca puseram o seu olhar nos leilões. “Sabemos bem que o nosso governo não tem dinheiro para nada”. Um exemplo concreto desta ausência de apoio do Estado à cultura é o próprio leilão das obras do conceituado António Aragão, cujas obras deveriam ser adquiridas pelo governo para exposição nos museus do país. Mas, ao que se apura, não há dinheiro para a cultura.

O leilão prossegue tarde dentro. As peças, apesar de idade avançada, quase que nos sorriam a pedir “adoção”. Objetos que guardaram intimidades, segredos, afetos, alegrias e tristezas, tudo ao dispor de alguns euros. O mestre de restauro, também ele de idade avançada, assiste à venda, também ele enrugando, de quando em vez, a testa. Peças caríssimas agora arrematadas por 50 ou 100 euros. “Tem restauro”, apregoava-se a dada altura, quando um móvel airoso, estava prestes a ser vendido, embora com caruncho.

Na Rua da Mouraria, o silêncio do sábado guardava toda a rua. Mas as palavras do leiloeiro ecoavam ainda numa das mais emblemáticas zonas da cidade do Funchal, tentando casar um povo dito moderno com o bom gosto da história das antiguidades.