Quo vadis Marítimo?

Quis o acaso que esta colaboração se inicie com o tema do momento na actualidade regional: a tormentosa situação do presente da maior instituição desportiva da Madeira, o maior das Ilhas, e já agora depois dos designados três grandes e do Braga, seguramente o quinto maior clube de Portugal. O problema é que o Marítimo, e aqui mistura-se a SAD do futebol com o próprio Clube, está em convulsão profunda, crise directiva, com ânimos exaltados, dividido onde não devia estar, o que resulta sobretudo da classificação da sua equipa de futebol, última classificada da Liga com cinco derrotas em cinco jogos. A crise, no entanto, extravasa o futebol, é muito mais profunda, e o Marítimo é hoje, estou em crer, uma nau à deriva, uma espécie de barco sem arrais, mas a memória não pode ser curta…

No primeiro dia de Junho de 1997 eu estava em Boston/EUA, como Bolseiro da FLAD no College of Communication, e no adro da Igreja de Santo António em Cambridge, John Faria, ao tempo conselheiro das Comunidades Madeirenses, perguntou-me “o que é que se tinha passado na Madeira, que revolução tinha sido aquela?”  O acontecimento em causa foi aquilo que tinha acontecido uma semana antes – a 25 de Maio em pleno estádio dos Barreiros – a contestação dos sócios do Marítimo ao projecto do clube único.

Estava fora da Madeira desde 21/22 de Maio e como tal (a Internet estava então nos seus primórdios) não sabia o que se estava a passar e manifestei o meu desconhecimento e grande surpresa. Regressei a Portugal no início de Julho, e no aeroporto encontrei Carlos Pereira, que pouco tempo depois se tornou presidente do Marítimo, e estava a caminho de um período de férias no Alaska. Da conversa corrida de então retenho algumas ideias: o Marítimo estava “em pele e osso”, sem dinheiro, à beira da falência e do abismo, a caminho do precipício fruto de uma gestão danosa e irresponsável liderada por Rui Fontes.

Quase vinte e cinco anos depois Rui Fontes voltou a ser eleito presidente do Marítimo, num acto eleitoral democrático e legítimo, recolhendo 65% dos votos “contra” os 35% do seu oponente. O Marítimo de Outubro de 2021 não tinha nada a ver com aquele de Maio de 1997. De comum apenas o facto do clube permanecer na primeira divisão do futebol português. À instituição que estava então moribunda, sem dinheiro e sem património, mergulhada numa crise desportiva e institucional profunda, sucedeu um clube estável em termos do seu funcionamento, com uma situação financeira controlada, e uma situação patrimonial quase de excelência – é verdade, pago pelo erário público como de resto o foi para todos os clubes da Madeira – mas um Clube sólido, organizado, funcional, pujante, estou em crer para mim que o quinto maior de Portugal.

Em Outubro de 2021 os sócios do Marítimo votaram sobretudo contra Carlos Pereira, e Rui Fontes foi eleito presidente, com um projecto (?) baseado em algumas ideias fundamentais que aqui recordo: devolver o clube aos sócios, uma gestão profissionalizada do futebol com uma administração liderada por João Luís, a criação de um Fundo, lembram-se? , e para concluir com a promessa de que tudo seria diferente para … melhor. Nem um ano depois tudo é diferente, é verdade, mas para … pior. Para muito pior, e é aqui que reside o grande busílis do problema.

O Marítimo não voltou ao tempo da “pele e osso”, mas a sua gestão voltou a mergulhar no caos, por mais que se tente ou esconder ou enganar. Os factos não mentem, e a sucessão dos últimos tempos é hilariante … tenho para mim que estão a ser praticados actos contrários à própria instituição, lesivos da honorabilidade do próprio Clube, e que colocam em causa o seu futuro de curto e médio prazo. Onze meses depois as promessas esvaíram-se todas: à organização sucedeu o caos, à promessa de tudo diferente para melhor verifica-se o oposto, um início de temporada trágico, a equipa que não está condenada a descer de divisão, longe disso se arrepiarmos caminho, mas que atravessa uma fase conturbada e delicada, o Marítimo é hoje uma instituição sem liderança e estratégia, sem projecto, fragilizada e em convulsão.

O dia de ontem acrescentou algo que eu julgava impossível de acontecer: Rui Fontes, o presidente da assembleia-geral da SAD, e presidente do Clube que é o maior accionista com mais de 90% do capital social, em dia de jogo importante com o Santa Clara nos Açores, fez publicar duas convocatórias no Jornal da Madeira, para se auto-eleger presidente da SAD, e destituir a actual administração liderada por João Luís. O actual presidente, ainda antes do jogo, criticou que a convocatória tivesse sido feita ontem, algo que a meu ver foi de propósito, um acto inadmissível e contrário ao próprio Marítimo, que julgo eu, levando à letra os Estatutos, devia ser punido. E dentro de campo o Marítimo não foi inferior ao seu adversário, mas a instabilidade de fora para dentro também não ajudou, como o próprio treinador verde-rubro o reconheceu.

O Presidente da assembleia-geral do Clube já devia ter vindo a público criticar um acto reprovável por parte da Direcção, mas é ele que está agora indigitado para presidir à assembleia-geral da SAD. Uma situação surrealista, juridicamente algo que só pode ter tido a complacência de uma assessoria jurídica que deve estar a ser paga … a peso de ouro. Tudo isto é surrealismo puro, do domínio da tragicomédia.

Conheço João Luís há 41 anos, desde que começamos a jogar juntos nas camadas jovens do Marítimo. É um homem sério, leal, trabalhador, inteligente e culto. Creio que agora já percebeu que foi usado como bandeira eleitoral nas eleições de há um ano. Rui Fontes já o quis despedir em Junho, volta agora a carga com os argumentos de que “não consegue levar o projecto até ao fim” se não for presidente da SAD, mas de quem nos últimos tempos tem sido o grande desestabilizador. Ontem, Rui Fontes dizia que a assembleia-geral tinha de ser convocada por causa do prazo de trinta dias … que é contado a partir da data da convocatória. Um argumento que é um insulto …

A candidatura de Rui Fontes tem a marca do tal “Fundo”, que era para existir e depois já não era bem assim, mas que na prática tem a “mão insivisível” da Gestifute de Jorge Mendes. Creio que o actual treinador do Marítimo é agenciado pela Gestifute, os reforços é que continuam a faltar. Primeiro em quantidade, agora até ver em qualidade, tudo isto com a interferência “abusiva” do presidente do Clube. E até Daniel Ramos foi dado como o próximo treinador, mas afinal já não vem por “um qualquer problema de impostos” na Arábia Saudita, (onde isto já vai …) ele que não é agenciado pela Gestifute.

A discussão é em torno do futebol, o arranque não podia ser pior, a situação tem laivos de comédia, e é de evitar a tragédia, a única coisa positiva é que faltam 29 jornadas. A pergunta é Quo Vadis Marítimo? Têm a resposta os sócios, sobretudo na sua maioria eleitoral, que às custas de quererem a legítima Mudança fizeram regressar o clube a caminho de um passado tenebroso. Nada é irreversível, mas é preciso mudar. E agir, mas já, antes que seja demasiado tarde.

(Jornalista, CP 818)