Rábulas de Abril: o que verdadeiramente importa é não perder a oportunidade de posar para o retrato

 

Ilustração de JOSÉ ALVES.

Neste dia de aniversário de abril, a data maior da liberdade nacional balança entre o ímpeto de assinalar a revolução e o espetro do vírus sem soluções à vista. Como ilustra o cartoon de José Alves, em tempo de pandemia, os cravos tendem a ficar ofuscados com a hegemonia de um vírus que a iluminada inteligência científica e técnica não tem capacidade de resposta. Somam-se mortos, enterram-se em valas comuns sem a presença dos amigos e, nas pacatas ruas da Madeira, gritos de dor mudos, só captados pelos olhares aflitivos, tão estranhos, que uma máscara deixa sobressair, qual “triller” de uma civilização flagelada.

Mas o Estepilha compreende o desejo de alguns em assinalar a festa. Então, haveriam de perder a oportunidade de posar para o retrato, quais capitães reciclados de abril? Então, com ou sem máscara, perderiam o tempo de antena desta data solene sem arremessar com a prosa politicamente correta? Então, haveriam de perder o momento de, mais uma vez, fazer de conta que pensam verdadeiramente naqueles que mais precisam de ajuda num tempo tão crítico como o de hoje? Não. Abril é só um e, por isso, é preciso aparecer e fazer de conta que estão preocupados com todos como se as palavras bem embrulhadas pudessem colocar o pão na mesa de centenas de trabalhadores já em lay off.

De resto, nos outros dias do ano em se se devem cumprir (e não discursar para a foto) abril, onde estão esses saudosos defensores dos 46 anos da revolução dos cravos? Em qual das famílias portuguesas empobrecidas preferem ficar e acompanhar os seus dias de real empobrecimento? Quando e onde se ergue a voz destes “generais” retóricos de abril, no momento em que os pobres lhes estenderem as mãos e lhes lembrarem que abril é todos os dias?

O Estepilha compreende que o confinamento se está a tornar irrespirável e que, mesmo com um horizonte sem garantias, será sempre preciso sorrir. E, sim, apesar de tudo, ainda há coisas belas que valem a pena, como recordar e aplaudir os 46 anos de abril. Mas em linha com um tempo tão singular e inóspito como este. Quando há gritos mudos neste silêncio que varrem as famílias e as nossas ruas, haverá espaço para a retórica política e fogo de artifício de abril?