A(s) catástrofe(s) em curso

Generalizou-se a ideia de que a pandemia do coronavírus é democrática. Que atinge a todos por igual. Que nenhum país está a salvo ou imune.

Na teoria poderia ser assim, mas na prática é tudo bem diferente. Como podemos diariamente constatar e observar.

Com efeito, se é verdade que o vírus pode afectar todos os países e povos, a capacidade de resposta e de protecção é substancialmente diferente, quer se trate de países desenvolvidos ou em desenvolvimento.

Sendo certo que diariamente o número de infectados e de mortos não pára de subir e que a quantidade de vítimas na Europa e nos Estados Unidos atinge já dimensões assustadoras, nada nos garante que o pior não esteja ainda por acontecer.

Em declarações ao semanário “Expresso”, publicadas na sua edição do último sábado, dia 4 de Abril corrente, o director do Programa de África do think tank britânico Chatham House, Alex Vine era taxativo: “Quem vai sofrer mais com a covid-19 são os países pobres e as pessoas mais vulneráveis”. E porquê?: “A imposição de restrições aos movimentos em países pobres com sistemas de saúde débeis e recursos limitados, aliados a altas taxas de densidade populacional, é tarefa árdua. E a insegurança alimentar é uma ameaça séria quando os mercados de alimentos são fechados durante três semanas seguidas. Só por si, a procura de fornecimento alimentar levou muitos cidadãos a saírem para as suas aldeias, procurando escapar às capitais cheias de bairros sobrelotados, onde o isolamento social é, na prática, impossível. E só esse movimento criou novos canais de potencial contaminação pelo vírus”. Por isso Vine acrescentou: “teremos de aprender como é que outros métodos podem ajudar a reduzir o contágio em localidades pobres e com alta densidade populacional, como os musseques de Luanda”.

E tudo se pode complicar ainda mais em países como o Brasil, cujo presidente incita os cidadãos a romper a quarentena e voltar à “normalidade”, contrariando as recomendações de especialistas de todo o mundo e do próprio Ministério da Saúde brasileiro, ao ponto de em editorial de 26 de Março p.p., o jornal “O Estado de S. Paulo”, o ter acusado de passar “a ser, ele mesmo, uma ameaça à saúde pública” e de através do confronto – com governadores de Estado, com o Congresso, com a imprensa e até com integrantes do seu próprio governo -, “criar um clima favorável a soluções autoritárias”.

A peça do “Expresso” da autoria da jornalista Cristina Peres referia ainda que à medida que a covid-19 penetra lentamente no Médio Oriente, “as consequências humanas e políticas podem ser devastadoras”, como escrevia a BBC, na passada quinta-feira, num artigo que comparava a situação a uma bomba-relógio, dado que, mais do que noutras regiões, o conflito naquela zona do globo tem gerado grande quantidade de populações de deslocados e refugiados, que estão vulneráveis ao contágio pelo coronavírus. Concluindo que: “A Síria,a Líbia e o Iémen são exemplos de Estados falhados, com recursos e infraestruturas médicas muito limitados, que estão sob ataque no presente ou onde o cessar-fogo não produziu os efeitos desejados” e “o encerramento das fronteiras fez com que as rotas de migração em África, tal como o êxodo dos migrantes económicos a oriente, criassem bolsas de milhares de pessoas presas sem sustento e sem meio de evitar o contágio ou combater a covid-19”. E a outro nível, importa não esquecer que há três mil milhões de pessoas em todo o mundo, a maioria na África Subsariana, que enfrentam a doença sem água potável e sabão e 900 milhões de crianças não têm água ou sabão nas escolas

Mas esta profunda desigualdade dos cidadãos face ao coronavírus é bem mais profunda. E manifesta-se em frente aos nossos olhos. Disso mesmo dava conta no “Expresso Diário” o jornalista Valdemar Cruz, num texto vindo a público a 31/3(cito): “O meu confinamento num apartamento na baixa do Porto, equipado com tudo quanto necessito para me distrair e comunicar, não é bem o mesmo que viver em precárias condições no apartamento minúsculo e sobrelotado de um bairro camarário, ou pior, na barraca de uma ilha, ou, extremo absoluto, ter a rua como dormitório. Não há fantasia de igualdade que resista, nem comparação possível com quem deambula numa casa pornograficamente recheada de assoalhadas e com jardim à vista e a perder de vista. Até podemos estar todos a viver numa espécie de prisão domiciliária, mas o modo como sente, a pode ou consegue vivenciar o operário da construção civil, o pescador de Matosinhos, a empregada de limpeza ou o precário a recibos verdes é bem diversa da de um banqueiro com espírito, mesmo de santo” – talvez este facto ajude também a explicar por que é que são os mais velhos quem menos respeita a quarentena decretada.

Valdemar Cruz acrescentava (volto a citar): “O Corona é até inconstitucional, se estabelecermos um paralelismo com o postulado na nossa Constituição, segundo o qual a trabalho igual deve corresponder salário igual. Então, a doença igual deveria corresponder padecimento igual.

Não vemos nada disso. Pelo contrário, vemos a estrutura de classes em todo o seu esplendor, escancarada nas consequências de um vírus que, se algo socializa, é apenas a doença. Tudo isto somado parece evidente que o Corona Vírus nem eurocomunista é, e está longe de mostrar pergaminhos para se reclamar de socialista”(fim de citação).

Uma desigualdade que se acentuará, já está, aliás, a verificar-se, em resultado do estado de emergência que foi, entretanto, declarado em diversos países. A demonstrar isso mesmo basta referir que, aqui mesmo ao lado, em Espanha, a proibição de despedimentos decretada pelo governo não impediu que Março fosse o mês com mais novos inscritos na sua história: com mais de 300 mil novos desempregados.

E em Portugal, como se pôde ler igualmente no “Expresso Diário”, com os cortes abruptos na sua actividade, as empresas estão a dispensar os mais frágeis, os temporários, que, por sinal, são também os que têm menos apoio social e menos acesso ao crédito. Numa reportagem assinada por Helena Bento referia-se ser difícil saber com rigor quantos trabalhadores, seja temporários, seja todos os outros – com contratos a termo, trabalhadores independentes, a recibos verdes e trabalhadores que estavam no período experimental – foram despedidos desde o início da actual crise. Mas sabe-se que muitos trabalhadores têm sido praticamente obrigados pelas suas empresas a tirar férias ou incitados a pedir licenças sem vencimento. Uma realidade, sublinhe-se, comum a todo o país. Continente e Regiões Autónomas.

No texto a que nos temos vindo a reportar reproduzem-se declarações de dirigentes sindicais e da Associação Portuguesa das Empresas do Sector Privado de Emprego e de Recursos Humanos. Os primeiros aludem a trabalhadores despedidos “que não têm direito a nada, muitos deles tinham contratos mensais, outros contratos diários” e perspectivam o que poderá acontecer no sector hoteleiro e do turismo, designadamente com a circunstância de a maioria dos hotéis, incluindo os maiores, recorrer a empresas de trabalho temporário para contratar pessoas para a limpeza dos quartos, mas também para outras funções, estimando que, entre pessoas já despedidas e outras que ainda vão sê-lo, sejam “100 mil nestes sectores”. O segundo fala em “75 mil pessoas despedidas” e indica que a associação “estima que haja uma quebra acima dos 50%, em tudo o que é sector automóvel, empresas de fabrico de componentes para automóveis, restauração, hotelaria, no fundo, toda a indústria produtiva e de manufactura”. E no regime de lay-off sabe-se, no momento em que  escrevo, encontrarem-se já mais de 550 mil trabalhadores, sendo que o processo ainda  agora começou.

Por outro lado, e como alertava há escassos dias o antigo ministro Paulo Pedroso, em Portugal, em Fevereiro passado, 47% dos desempregados não recebiam subsídio de desemprego nem subsídio social de desemprego. E em 2018, último ano para o qual temos estatísticas da pobreza, 45,6% dos desempregados eram pobres quando a mesma taxa para as pessoas em idade activa não chegava a 17%. No artigo inserto no “DN” de Lisboa, o ex-dirigente e militante do PS assumia que “o efeito de arrastamento do confinamento social sobre a procura interna e a ocorrência de medidas semelhantes em quase todo o mundo que implicarão uma contracção nas exportações e em particular uma descida abrupta do turismo, responsável por um quinto das exportações, só pode fazer-nos esperar que o saldo entre criação e destruição de emprego no segundo e terceiro trimestres deste ano seja dramaticamente negativo”, motivos pelos quais reclama “uma prestação social extraordinária por perda de emprego, de acesso universal, que garanta pelo menos durante um semestre, ou até que a economia retome um mínimo de condições normais de funcionamento, um nível mínimo de rendimento a quem não se qualifique para nenhuma das prestações sociais existentes pelas regras actuais”. Paulo Pedroso conclui escrevendo que se trata de uma medida “que se impõe para evitar um crescimento insustentável da vulnerabilidade à pobreza e uma enorme instabilidade social no país”.  Ou seja, conviria que não nos esquecêssemos que a saúde pública também passa por ter condições para ter comida na mesa!

As perspectivas em termos de destruição de empregos são, de resto, mundialmente assustadoras. Os EUA, por exemplo, registaram 10 milhões de desempregados em apenas duas semanas. E, segundo a Reserva Federal, o equivalente ao Banco de Portugal, no pior cenário poderão vir a registar uma taxa de desemprego de 32%, mais do dobro da verificada por ocasião da Grande Depressão nos anos trinta do século XX. E no caso particular da Região, calcula-se que cerca de 90 mil trabalhadores por conta de outrem ou a recibos verdes (independentes), a esmagadora maioria da respectiva população activa, tenderão ou perderão mesmo rendimentos. Não admira por isso que a nível nacional a Rede de Emergência Alimentar tenha já recebido mais de 3.100 pedidos de ajuda ou que, em apenas 15 dias, três instituições da Madeira tenham também registado um aumento substancial nos pedidos de ajuda alimentar. Uma ajuda que poderá vir a estar em risco a partir do próximo mês de Maio.

Simultaneamente estamos a assistir ao “salve-se quem puder” nas relações entre os Estados. Ao vale tudo nas relações internacionais.

Com efeito, nos últimos dias, soube-se que os EUA foram acusados de desviarem um carregamento com 200 mil máscaras de protecção de uma multinacional que estava destinado à polícia de Berlim, uma acção que o responsável pela segurança interna na capital da Alemanha classificou como “pirataria moderna” e que ocorre na sequência da proibição ordenada por Trump das empresas americanas exportarem material de protecção. Uma decisão que poderá originar “graves implicações humanitárias” nos sistemas de saúde do Canadá e da América Latina, regiões que importam quase todo o seu equipamento à referida multinacional. Um comportamento que, porém, já tinha sido igualmente adoptado pelo governo alemão que havia proibido a venda ao estrangeiro de equipamento médico de protecção e reteve carregamentos com destino a países vizinhos, o que originou fortes críticas na Suiça e na Áustria. E a Turquia bloqueou um avião com ventiladores comprados pela Espanha, alegando que os mesmos eram necessários para reforçar o seu sistema de saúde. Um autêntico faroeste! E a que Portugal também não escapa: uma organização não governamental sem fins lucrativos acusou o nosso país e a Áustria de estarem a “açambarcar” medicamentos usados no tratamento da Covid e dois milhões de máscaras furtadas em Espanha podem ter sido vendidas em Portugal.

E como se tudo isto não fosse mau demais, há quem recorra à fraude, às burlas, à especulação de preços, ao açambarcamento de bens. Em Espanha, por exemplo, falsos padres, funcionários de saúde pública que não o são, voluntários de ONG que não existem, tudo serve para tentar burlar quem está isolado. Foi, aliás, em Espanha, na pequena localidade de La Línea de la Concepción que em finais de Março ocorreu uma história negra, grotesca. Um grupo de 28 idosos, que tinham sido despejados de um lar por estarem infectados com o coronavírus , foi recebido à pedrada por um grupo de pessoas que tentavam impedir a entrada na cidade das ambulâncias que os transportavam. E chegados à residência onde foram realojados pelo governo autónomo da Andaluzia foram cercados e durante a noite alvo do arremesso de vários engenhos explosivos – o pior da natureza humana em acção!

Entretanto, outros países aproveitam a pandemia para intensificar os ataques ao próprio Estado de direito, inclusive no seio da União Europeia. É o caso da Hungria, cujo  primeiro-ministro, Viktor Orbán passou a poder governar por decreto sem prazo, podendo construir a seu bel-prazer um estado de emergência permanente e dessa forma estender ainda mais o controlo do governo sobre a sociedade. E nas Filipinas, o respectivo presidente deu ordens à polícia para que atire em quem furar a quarentena.

Entre nós, muito embora, quer o Presidente da República, quer o 1º Ministro tenham reiterado que “a declaração do estado de emergência não suspende a democracia”, houve quem tivesse dado mostras de preferir uma espécie de “suspensão da democracia por seis meses”, advogada, há  anos atrás, pela então líder do PSD, Manuela Ferreira Leite. É assim que devem ser interpretadas as palavras proferidas na Assembleia Legislativa da Madeira pelo vice-presidente do governo regional, que, a propósito da adopção  de medidas no contexto em que vivemos, disse taxativamente que “não quer saber se são legais ou constitucionais”. É caso para dizer, o actual inquilino da Rua do Quebra Costas deve ter batido palmas e regozijado-se por  haver quem não se tenha esquecido da cartilha que legou.

De igual modo não deixou de ser profundamente desajeitada a forma como o presidente do governo lidou com a questão dos turistas que cá se encontravam quando foi declarada a quarentena, ou que até chegaram depois. Percebeu-se, que se pudesse, recorreria a uma espécie de ponte aérea para os despachar, como se fossem leprosos. Ainda por cima, numa terra onde o turismo desempenha um papel determinante na respectiva actividade económica. Pode ser que ainda venha a querer que regressem, mas haja quem prefira destinos mais acolhedores…

Face ao exposto,acaba por não surpreender de todo que depois a populaça tenha comportamentos manifestamente reprováveis. Que insulte turistas ou que fique incomodada por partilhar espaços com profissionais de saúde. Com tais exemplos, de que estavam à espera? De milagres?…

Aliás, é no mínimo caricato ouvir apelos à não discriminação social por parte de representantes de um partido que ao longo da sua história nesta terra, outra coisa não fez senão perseguir e ostracizar pessoas, cidadãos cujo único pecado consistia em perfilharem outras opções políticas e por isso transformados em inimigos. Como é profundamente risível a conversa de que “neste momento, não há madeirenses de 1ª, nem de 2ª”. Uma declaração que por si só é o espelho da denominada “Madeira Nova”.

E a comprovar que o ADN da criatura continua bem presente, até se quis limitar o acesso à informação, criando mais uma especificidade regional: o encerramento de quiosques de venda de jornais, em tempos de quarentena. Mais uma salva de palmas do líder da “máfia, no bom sentido”!

Enfim, no meio do caos em que o mundo está mergulhado, há quem assegure, como o jornalista Jorge Almeida Fernandes no “Público”, que “jamais voltaremos à antiga «vida normal»”, defendendo que”não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar uma crise grave”. No mesmo jornal, Vicente Jorge Silva questiona: “Um mundo novo depois do coronavírus”? E no que acaba por denominar de “tentação utópica” escreve: “Um mundo novo onde os Estados repressivos e anti-democráticos, as leis da selva do velho capitalismo financeiro ou do novo peso asfixiante de um capitalismo numérico – emergente do confinamento do teletrabalho -, possam dar lugar a outro mundo mais livre, mais justo, mais igualitário e mais frugal, menos alienado pela febre consumista  e mais harmonioso com os genuínos valores e prazeres da vida, cujo imperativo nos terá sido revelado ao longo desta reclusão forçada”. Como que em resposta, o jornalista Vítor Belanciano, também no “Público”, conclui: “O momento que estamos a viver tanto pode resultar em mais austeridade, autoritarismo e quanto menor democracia melhor (não é isso que agrega China, EUA, Brasil, Rússia ou Hungria, para lá das diferenças?), ou construir um espaço onde a democracia seja compatível com o máximo de equidade social, política, cultural e económica. O que está a acontecer não exige apenas reacções. Exige também agir de forma a que abra espaço para a mudança. Não se fará tudo de uma vez. Mas outra normalidade é precisa”.

 

  *por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum: Banha de Cobra: O responsável mor pelo famigerado PAEF, que a Região e os seus habitantes continuam a pagar, resolveu aproveitar a quadra pascal para reclamar por uma “ressurreição colectiva”. Um arrazoado embrulhado na velha cassete da “revisão constitucional”. Os anos não perdoam.