“Não houve nem coragem nem vontade política para retirar as pessoas das zonas de risco”, diz Raimundo Quintal nove anos depois do 20 de fevereiro

“Há políticos por aí, que deveriam conhecer a História da Madeira, mas andam irresponsavelmente a dizer que a retirada do gado não contribuiu para a diminuição dos riscos”.
“A sociedade madeirense está mais atenta nem que seja pelo medo”.

“Genericamente, todos nós aprendemos com o 20 de fevereiro. A sociedade madeirense está mais atenta nem que seja pelo medo. O que acho é que do dinheiro gasto, houve dinheiro bem gasto e muito dinheiro mal gasto”. É esta, em síntese, a avaliação que o investigador Raimundo Quintal faz sobre a tragédia que ocorreu já lá vão nove anos, na Madeira, com o Funchal no centro da destruição então verificada. Para a história, ficam 48 mortos, 6 desaparecidos, 600 desalojados, duas centenas e meia de feridos. Um acontecimento que deixou marcas, a tal ponto de algumas delas serem logo reavivadas sempre que chove mais do que o considerado normal. Houve terra, houve mar, ouve lama, houve quebradas, houve morte, há coisas que o tempo não apaga. Foi um sábado de má memória.

Raimundo Quintal tem o Doutoramento em Geografia Física pela Universidade de Lisboa, 2007, Licenciatura em Geografia (Universidade de Lisboa, 1981), foi vereador na Câmara Municipal do Funchal entre 1994 e 2002, com o pelouro do Ambiente, Educação e Ciência, fundador da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal. Uma “fonte” de conhecimento e uma voz ativa, desde longa data, na defesa das questões ambientais. Contra o regresso do gado às serras, na sua forma anterior, contra a obra do Cais 8 e ainda com dúvidas sobre as reais vantagens do prolongamento da Pontinha, contra a intervenção que delapidou o património nas ribeiras do Funchal, levadas a efeito pelo anterior governante que então tutelava as obras no Executivo de Albuquerque, contra a existência de habitações em zonas de risco. “A prova do erro foi que este secretário, na altura diretor regional, decidiu fazer diferente no mesmo Governo”, lembra Raimundo Quintal.

Faço votos para que se pense antes de construir

“Tive oportunidade de manifestar a minha opinião contrária à construção do dito Cais 8. Fui vilipendiado por ter dito que aquele Cais era, de facto, um sorvedouro de dinheiro e que seria inútil, como realmente é. Agora, fala-se em aumentar a Pontinha para viabilizar a acostagem de navios no Cais 8. Não sei se será assim tão líquido, uma vez que a dinâmica das águas guarda muitas vezes segredos, que os políticos não sabem desvendar quando se decidem pelas promessas. A obra da Pontinha não vai impedir que continuem a desaguar três ribeiras nesta baía. Esta relação das ribeiras com a baía é extremamente complicada, pelo que, fechando ainda mais, pode resultar numa situação indesejada. O que faço votos é que se pense antes de construir seja o que for, estou farto de ver gastar dinheiro dos nossos impostos de forma irresponsável”.

Faz impressão não haver dinheiro para o varandim da ribeira João Gomes

O investigador está de acordo com a construção dos açudes, mas já não compreende a razão que terá levado o Governo a não proceder de igual forma relativamente à Ribeira dos Socorridos. “Por acaso não houve mortes nessa ribeira, em 2010, mas em outubro de 93 houve. A foz da ribeira dos Socorridos está o coração da energia da Madeira, além de fábricas mais a montante. Tem uma bacia hidrográfica que é igual ao somatório das bacias hidrográficas das ribeiras de São João/Santo António e de Santa Luzia/João Gomes. Era bom que se refletisse sobre isto”.

Tem outra situação a apontar e que afirma não compreender: “Faz-me impressão que, passados nove anos sobre o 20 de fevereiro de 2010, e ainda não tenha havido dinheiro para reparar o varandim da ribeira de João Gomes. Até por razões estéticas, de imagem junto ao Mercado, onde para baixo temos o canal onde se podem apanhar tainhas e a montante temos uma zona que parece terra de ninguém, onde continua o depósito de gás, apesar de ter sido construído um na recuperação do Jardim do Campo da Barca. É vergonhoso”.

Mas não é tudo mau: “Felizmente, foi agora anunciada a obra de contenção da margem oriental da ribeira de Santa Luzia, a partir da rotunda dos Viveiros e até à Fundoa. Mas se andarmos para montante, onde existe uma pedreira, perto da antiga estação de água dos Tornos, parece zona bombardeada e está pior que que estava no 20 de fevereiro”.

Elogios à construção da faixa corta-fogo

Num contexto em que se procura fazer um balanço à ocorrência de 20 de fevereiro de 2010, lembra Raimundo Quintal, “é importante associarmos o sucedido com o grande incêndio de agosto de 2010, disse-o na altura, que as consequências poderiam ser até mais gravosas do que propriamente a aluvião. E é por isso que vejo com bons olhos a decisão do Governo Regional, através da secretaria do Ambiente, de construir uma faixa corta-fogo ao longo do Caminho dos Pretos, que deverá ligar a zona das Carreiras até ao Pico Alto. Isto é importantíssimo, uma vez que quando há fogos com origem em Santo António e São Roque, passam por ali a caminho da Camacha e quando começam na Camacha, passam por ali a caminho de Monte, São Roque e Santo António. Além disso, também é importante para proteger o Parque Ecológico”.

Governo com poucos viveiros

E é neste particular que aproveita para responder às acusações de que não fala daquela faixa corta-fogo, que está a descoberto. “Não tenho qualquer problema em falar disso. Trata-se de uma faixa que deverá contemplar uma vegetação rasteira, com algumas árvores da flora da Madeira e não me choca nada que tenha castanheiros, nogueiras, por exemplo. Claro que nesta fase intermédia, a situação é crítica, mas é preciso aguardar pela intervenção”.

Raimundo Quintal alerta para o facto de, em sua opinião, não ter havido “o esforço que seria exigível na florestação de toda a cordilheira central e também do Paul da Serra. Deveria ter havido uma maior mobilização, mas para isso o Governo Regional deveria dispor de muito mais viveiros e com mais plantas. Não podemos fazer florestação, apostando na vegetação endémica, sem ter viveiros. E os viveiros que o Instituto de Florestas e Conservação da Natureza dispõe são manifestamente poucos para dar a resposta exigida”.

A serra é de todos e não de um grupo

Aponta outro aspeto positivo resultante de uma maior sensibilização do pós 20 de fevereiro, sobretudo nos últimos dois anos, com a deslocação de alunos das escolas da Região às serras. “A serra é de todos nós e não de um grupo que julga que deve ter aquele espaço para ter deixar lá umas cabras e umas ovelhas. É importante que os miúdos vão plantar, mas também é importante que regressem para cuidar, que fiquem conscientes que se trata de um trabalho do ano inteiro. Talvez aqui tenha havido alguma falha, há uma pequena faixa que volta, o resto não. Não interessa dizer que foram plantadas 50 mil árvores se no ano seguinte só tenho mil vivas”.

Há políticos por aí que deveriam conhecer a História da Madeira

Em direção aos políticos, Raimundo Quintal não é de “poupanças” nas palavras, nas críticas, igual a si próprio diga-se. “Há políticos por aí, que deveriam conhecer a História da Madeira, mas andam irresponsavelmente a dizer que a retirada do gado não contribuiu para a diminuição dos riscos. Podia começar a falar de muitas datas, mas a título de exemplo temos que a 20 de junho 74 (está nas páginas do Diário), aproveitando a fase que se seguiu à revolução de abril 74, numa gestão democrática da altura, há uns indivíduos que vieram de Santo António e invadiram, com ameaças, o então Parque da Câmara, hoje Parque Ecológico. E nesse ano, houve incêndios por todo o lado. Em agosto de 76 houve o maior incêndio de que há notícia na Madeira. Lamento que haja quem não tenha aprendido com o 20 de fevereiro de 2010 e ignore o fogo de agosto de 2010, que surgiu na transição de zona habitada para zona florestal. Sabe-se quem foi o autor, foi condenado a pena suspensa, por questões processuais”.

Fogo de 2016 e poderes tão incapazes quanto Zarco

Raimundo Quintal recorda que “os fogos de julho de 2012, agosto de 2013 e agosto de 2016 começaram “numa faixa promíscua. E repare que São Pedro, aí, quis demonstrar que o fogo não ia subir mas sim descer. Foi o pânico e no de 2016 tivemos que fugir para o mar e fomos tão incapazes como o Zarco. Aquilo que os poderes regional e local mostraram, na altura, é que foram tão incapazes quanto Zarco. Se o vento não amainava, tinhamos ficado com isto tudo queimado”.

Não aprender com os episódios que vão sucedendo é uma crítica contundente de Raimundo Quintal.

Mato continua junto às casas

Generalizada, mas aplica-se no caso ao 20 de fevereiro. Reporta-se, especificamente, às construções em zonas de risco. Diz que não houve nem coragem nem vontade política para retirar as pessoas das zonas de risco. O ordenamento, não só municipal mas regional, tem duas falhas nas zonas altas do Funchal, uma delas é “manter pessoas a viverem debaixo de rochas e junto ao leito de ribeiros”, outra é “a falta de limpeza dos eucaliptos, das acácias, dos matos, que convivem com as casas e constituem uma grande ameaça. Deveria haver limpeza de terrenos, entre os 500 e 800 metros de altitude, criando aí sim, prados, com a possibilidade de ter ovelhas em espaço ordenado, devidamente vedado e com acompanhamento de veterinários. Mas não, o mato continua, as casas continuam ao pé do mato e há um festim para voltar a colocar o gado nas terras mais altas na cordilheira central e no Paul da Serra, para voltar a fazer um deserto. Leiam “A Eternidade”, de Ferreira de Castro, que esteve na Região nos anos trinta e que retratava bem como era na época”.