A lei “tramada” do (des)apego

icon-Cheila-MartinsDurante alguns anos a lei do (des)apego passou-me mais-ou-menos ao lado. Sempre fui muito ligada a recordações, mas suficientemente autónoma para sacudir o cabelo, somar e seguir. Ajudou o facto de durante muito tempo contarem-se pelos dedos as perdas significativas para mim, depois chegou 2010 e isso mudou, e num ano em que todos perdemos alguma coisa [e ganhamos outras, como a resiliência], eu perdi muito. A má notícia é que foi só o início e que, desde então, a frequência tem sido mais do que a suportável. Refiro-me a Seres que me  dizem mais que muito. Dói.

2015 ainda está no primeiro trimestre e eu já perdi um bocadinho grande ao vê-la assim, naquela cama. O meu cérebro tratou logo de processar imagens bonitas, quase que a tentar anular aquela, e eu de repente dei por mim a sorrir quando me recordei das noites a jogar à bisca, ao lobão e das idas à praça. Sou capaz de desenhar com detalhe a casa na Baixa da Banheira, de identificar o cheiro a orégãos dos caracóis e de reconhecer o sabor dos carapaus alimados, o nosso cérebro é fantástico. Provavelmente ela já se lembra de pouco, isso deixa de ter importância, porque eu não me importo de lhe lembrar todas as vezes. Não partiu, mas parte de mim recolheu-se, como ela se recolheu naquela cama. E fico assim em posição fetal a pensar que já são 96, mas que ainda o ano passado eram 85 [não eram, mas pareciam] e tão bem que ela animava as danças às sextas-feiras. Quem ativou esta espiral do tempo em velocidade rápida, não percebia nada de amor, de saudade e de (des)apego. Espero que saiba pelo menos desativar a função e voltar a colocá-la em velocidade de cruzeiro.

A minha avó é linda na sua simplicidade, tem olhos minúsculos e brilhantes, sorriso aberto, orgulhoso sotaque algarvio e mãos de mãe de oito. Ensinou-me normas com as quais ainda me rejo, entre tantas a humildade de não esperar nada em troca, de levar o cálice sempre vazio. Merece todas estas palavras, mesmo sabendo eu d’ante mão que nunca as irá ler, e talvez seja esta mesmo a base da lei do (des)apego.