A sineira da Capela de São Paulo

Começaram os trabalhos de recuperação da Capela de São Paulo, imóvel classificado do Património Cultural madeirense, há vários anos arruinado e encerrado. Uma obra há muito prometida!

De acordo com a DRC, a empreitada, com o prazo de um ano, «tem como objectivo recuperar todos os elementos decorativos e construtivos de relevante valor patrimonial e artístico, removendo ou adaptando elementos introduzidos mais recentemente no sentido de harmonizar as várias construções executadas ao longo de quase seis séculos».

FOTO: RUI MAROTE, JANEIRO 2024.

A obra prevê a recuperação das paredes, coberturas, vãos, tectos, pavimentos interiores e exteriores, muro e portão de entrada, bem como a remodelação dos sistemas de electricidade, luminotecnia, segurança, água e esgotos. Paralelamente, decorrerá o restauro de bens móveis desta capela.

FOTO: JOSÉ LEMOS SILVA, 26 JUNHO 2010.

Tal como as pessoas, a longevidade dos edifícios passa por intervenções criteriosas ao longo do tempo.

A Capela de São Paulo que, de início, tinha São Pedro por orago, remonta ao tempo do capitão João Gonçalves Zarco. Teria sido fundada nos meados do século XV. Ao longo dos séculos, sofreu diversas intervenções, mais ou menos felizes. Infeliz foi, por exemplo, a demolição da antiga sineira desta Capela e a sua substituição por outra, anacrónica e anómala.

DESENHO, 1838.

Se observarmos, com atenção, a litografia de Susan V. Harcourt, sobre uma paisagem desenhada a partir da Ribeira de São João, editada em Londres no ano de 1851, podemos constatar que a sineira da Capela de São Paulo é completamente diferente da actual. O mesmo verificamos numa aguarela de Frank Dillon, datada de 1848, com uma vista sobre o Forte do Pico, do acervo do Museu Quinta das Cruzes, e noutro desenho de 1838.

LITOGRAFIA DE SUSAN H. V. HARCOURT, 1851.

A antiga sineira em cantaria cinzenta terminava em empena aguda e cimalha com balanço, com arco de volta perfeita para abrigar o sino. Era semelhante à das Capelas do Corpo Santo, São Luís de Tolosa e da desaparecida Capela de Santa Maria Madalena, da freguesia de Santo António.

A sineira quinhentista da Capela de São Paulo está bem retratada no desenho de Harcourt, na aguarela de Dillon, do Museu Quinta das Cruzes, num desenho de 1838 e ainda numa fotografia da década de 1870 (PT-ABM-COLFOT/671).

AGUARELA DE FRANK DILLON, 1848, MUSEU QUINTA DAS CRUZES, FUNCHAL.

Perante a representação iconográfica da antiga sineira, não seria esta a oportunidade para a reconstruir? Deixo a pergunta, sabendo de antemão que não colhe consenso, nalguns meios, uma intervenção desta natureza numa obra de restauro.

Segundo me disseram, o sino da Capela de São Paulo foi furtado. Há, por conseguinte, necessidade de o repor.

Nas capelas e igrejas, os campanários constituem uma referência simbólica de grande alcance. O sino chama os fregueses para as celebrações litúrgicas e anuncia momentos especiais do quotidiano e da vida das comunidades.

João dos Reis Gomes (1869-1950), no conto ‘A espada de São Paulo’, narra um incidente ocorrido na Capela de São Paulo, que ouvira em criança. Como o título sugere, trata-se do furto da espada em prata da escultura do apóstolo de Tarso. Foi por ocasião da festa que lhe é dedicada em Janeiro, comemorativa da sua conversão, que o celebrante se deu conta do desaparecimento da rica alfaia. Recorde-se que a espada, quase sempre desembainhada, é um dos principais atributos da iconografia de São Paulo, por representar o martírio. Hoje essa escultura encontra-se numa capela lateral da Igreja de São Pedro, da cidade do Funchal.

Infundadas suspeitas sobre o furto recaíram sobre o sacristão, o Freitinhas. Na narrativa de Reis Gomes, sobressai esta personagem, afirmando o escritor que «ninguém, como ele, repicava no pequeno campanário uma missa do parto ou uma novena.» Quando subitamente adoeceu, foi substituído pelo filho, mas a ausência do velho sacristão gerou «consternação geral»:

«Começava pelo sino. Os repiques perderam a cadência, saíram desiguais e atropelados, sem galhardia e sem decoro.»

Descoberto o ladrão e esclarecidas as circunstâncias do furto, o Freitas animou-se. E então:

«Os repiques, particularmente os das missas do parto e do Natal, voltaram à ritmada alegria doutros tempos.»

Hoje já não há Freitinhas, mas a Capela de São Paulo não merecerá uma sineira, condizente com a sua traça arquitectónica?