“Não há fome que não dê em fartura”: a propósito da reedição da ‘Insulana’, de Manuel Tomás

A Resolução do Conselho do Governo Regional da Madeira n.º 1261/2023 autorizou a celebração de um protocolo de desenvolvimento e cooperação cultural com o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes, tendo em vista a preparação da edição criticamente anotada de uma, estranhamente denominada, «colecção completa de epopeias do ciclo épico madeirense», na qual se inclui a  ‘Insulana’, de Manuel Tomás, mediante uma comparticipação financeira que não excederá os € 129 997,00 (JORAM, I, 223, 05-12-2023, 14).

Não vou aqui discutir o conceito de epopeia ou o dito ciclo épico madeirense, nem tão-pouco a coerência científica ou temática da colecção. Interessa-me antes a fortuna de uma obra menosprezada e ignorada, que, eventualmente, poderá vir a desfrutar de três reedições, nos tempos mais próximos.

A ‘Insulana’ de Manuel Tomás foi publicada em 1635, em Antuérpia e Ruão. Este poema épico trata do descobrimento da Madeira. Apesar de não ter merecido atenção no âmbito literário, a historiografia madeirense sempre o valorizou.

Consciente da importância desta obra, em especial para a construção da nossa identidade cultural, na década de 90 do século passado, propus, na qualidade de Chefe da Divisão de Publicações da Direcção de Serviços do Património e Actividades Culturais da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, a reedição da epopeia de Manuel Tomás. Para tal, foi convidado o professor João David Pinto Correia (1939-2018), a quem forneci a documentação indispensável. Infelizmente, David Pinto Correia não conseguiu levar por diante a tarefa que, de bom grado, aceitara. Publicou, contudo, dois textos sobre a ‘Insulana’: «O descobrimento da Madeira num poema épico do século XVII (A Insulana, de Manuel Tomás)», Lisboa, 1993; «O descobrimento da Madeira em textos de poetas “insulares” (principalmente na Insulana, de Manuel Tomás, e na Zargueida, de Francisco de Paula Medina e Vasconcelos)», Porto, 2008.

Após a morte de David Pinto Correia, desenvolvi a ideia de me dedicar à reedição da ‘Insulana’ e nela comecei a trabalhar no ano lectivo de 2020-2021, quando a Universidade da Madeira me concedeu uma licença sabática. Para tarefas específicas, contei com a prestimosa colaboração de dois colegas da UMa, um dos quais sugerido pelo actual Reitor. Depois da aposentação, concedida em Novembro de 2022, tem sido o meu trabalho diário.

Elaborar uma edição literária, devidamente anotada, é tarefa morosa e, por vezes, nada fácil. Muitas dúvidas surgem e reduzidos são os interlocutores para um eventual esclarecimento.

No entanto, já entrei no processo de revisão final e espero concluir serenamente o projecto, para depois editar sem pressa, pois esta é inimiga, não diria da perfeição, mas da vontade em não cometer muitos erros.

Pelo caminho, fica a surpresa de que, provavelmente, mais duas reedições estão na calha: uma de uma professora da Universidade da Madeira, que tem conhecimento do meu trabalho, outra encomendada e paga pelo Governo Regional ao Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes.

Estas surpresas não me fazem desistir do projecto, que defendi nos anos 90 do século passado, reafirmei na comemoração dos 500 anos da cidade do Funchal e abracei há quase quatro anos.

Só uma vez desisti de um trabalho, quando confrontado com a notícia de que outro historiador estava a fazer o mesmo. Foi nos primeiros anos da década de 90 do século XX. Trabalhava eu, entusiasticamente, na edição das ‘Memórias Seculares e Eclesiásticas’, de Henrique Henriques de Noronha. Alberto Vieira (1956-2019) soube do meu projecto na DRAC e logo anunciou que o Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA) iria proceder à publicação daquela obra. Como não ficava bem a DRAC estar a competir com o CEHA, desisti.

Até hoje me arrependo de o ter feito, porque a edição, preparada à pressa por Alberto Vieira, está repleta de erros, que prejudicam seriamente a compreensão do texto de Noronha e, por vezes, até o deturpam. Chego a pensar que não foi Vieira quem transcreveu o manuscrito de Noronha, mas alguém sem formação em paleografia. Enfim, uma ideia boa transformou-se numa competição inútil e com um péssimo resultado para a historiografia. A situação torna-se mais grave quando vemos, em dissertações de mestrado, teses de doutoramento e artigos científicos, transcrições do texto de Noronha feitas a partir da edição de Alberto Vieira, com todas aquelas deficiências de leitura do manuscrito. Recorro, por isso, sempre à fonte, quando quero ler ou citar Henrique Henriques de Noronha. E aconselho este procedimento.

Quando há tanto para fazer ao nível da divulgação de textos fundamentais da Cultura Madeirense, importa, acima de tudo, reunir investigadores e recursos para evitar desnecessárias duplicações. Somos poucos e a seara é grande.