Na Rua 31 de Janeiro, imóvel histórico ameaçado

Quem percorre a Rua 31 de Janeiro, da cidade do Funchal, em busca de edifícios representativos da arquitectura civil oitocentista, apenas encontra o imóvel com os números 79-80. Foi distinta moradia e, desde os finais dos anos 70 do século passado, casa da juventude, por ali ter funcionado a delegação do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e a Direcção de Serviços da Juventude, de tantas e gratas memórias para diversas gerações, que beneficiaram de actividades lúdicas, desportivas e espaços de estudo e de convívio.

FOTOS: © NELSON VERÍSSIMO, NOVEMBRO 2023

A casa foi construída nos finais do século XIX para nela habitarem o oficial do exército António Joaquim dos Santos Pimenta (1867-1910) e sua esposa, D. Carolina Henriques de França Dória (1875-1961), casados na Sé do Funchal em 24 de Outubro de 1898. Deste casamento nasceram duas filhas.

A primogénita, D. Teresa de França Dória Pimenta, nasceu em 26 de Agosto de 1899, na residência dos seus pais, à Rua de São Pedro. A segunda, D. Maria de França Dória Pimenta, nasceu em 13 de Dezembro de 1900, na casa dos pais, na Rua da Princesa (antiga denominação da Rua 31 de Janeiro).

Maria de França Dória Pimenta casou com António Leite Monteiro em 2 de Junho de 1920. Tiveram dois filhos: Carlos José Pimenta Leite Monteiro e Maria do Carmo Pimenta Leite Monteiro.

Teresa de França Dória Pimenta contraiu matrimónio em 23 de Abril de 1924 com o advogado e conservador do Registo Comercial do Funchal, Carlos Maria de Oliveira, natural da freguesia de São Pedro onde nasceu em 5 de Maio de 1898. Não tiveram filhos.

Uma filha do tenente de artilharia, António Joaquim dos Santos Pimenta e de sua esposa, D. Carolina Henriques de França Dória, nasceu na casa da Rua 31 de Janeiro, número 79. Ambas as filhas casaram civilmente ali. D. Teresa de França Dória Pimenta e o marido viveram nesta casa até à morte.

Teresa de França Dória Pimenta faleceu em 15 de Agosto de 1974 e Carlos Maria de Oliveira em 3 de Junho de 1977. Por morte deste, sem herdeiros, mas com testamento, a sua sobrinha, Maria do Carmo Pimenta Leite Monteiro Rodrigues (1924-2014), herdou a casa e logo tratou da venda do recheio e do imóvel.

Neste edifício, funcionou, nos anos de 1970-1971, a redacção e a administração do periódico infanto-juvenil, ‘A Canoa’, II Série, dirigido pela escritora Maria do Carmo Rodrigues.

Foi graças ao empenho da escultora Manuela Aranha, então com responsabilidades governativas na área da Juventude, que o prédio da 31 de Janeiro veio a ser adquirido pelo Governo Regional da Madeira a Maria do Carmo Rodrigues.

Este singular edifício, um bem do nosso Património Cultural em bom estado de conservação, corre o risco de ser demolido por iniciativa do seu proprietário.

Como se não houvesse outra área para construir, pretende o Governo arrasar um edifício oitocentista, a fim de ali edificar um incaracterístico prédio de habitação, com a denominação parola de Living Studios 31 Janeiro. Até parece nome de uma unidade de alojamento local!

Cúmplice deste planeado atentado à História do Funchal é a PATRIRAM, Titularidade e Gestão de Património Público Regional, S. A., porque lhe cabe o projecto e a sua eventual execução. Assim, a empresa pública regional que, entre outras, tem a missão de reabilitar património, e que se orgulha de ter promovido o restauro do edifício, onde está o Museu Photographia Vicentes, apadrinha agora a demolição de um edifício arquitectonicamente marcante, por sinal, a sua própria sede.

Perante as vozes discordantes que defendem o património e a identidade do Funchal, espera-se que o secretário regional do Turismo e Cultura homologue o parecer dos técnicos da Direcção Regional de Cultura, já emitido e que, certamente, não viabiliza a demolição daquele edifício.

Miguel Albuquerque afirmou, a propósito, que «o Governo Regional não vai fazer nenhuma obra que não cumpre a lei», acrescentando que «as intervenções são feitas em função dos regulamentos e da lei em vigor» (DN-Madeira, 22-11-2023, p. 3).

Com certeza, conseguirá, no âmbito jurídico, pareceres favoráveis à demolição. É uma questão de encomenda.

A sentença, porém, não se deve cingir, em exclusivo, à lei. Legalmente, muitas demolições ocorreram já no Funchal. Delas nos lamentamos hoje com aquela frase espontânea, tantas vezes repetida: como foi possível destruir um prédio desta grandeza?

Quando olhamos para as fotografias do Funchal desaparecido, publicadas em várias edições recentes da Secretaria Regional do Turismo e da Cultura e incensadas com loas vulgares à História e à salvaguarda do Património Cultural, interrogamo-nos como puderam os poderes públicos sacrificar tantos bens arquitectónicos, desfigurando o contexto urbano e contribuindo para o inegável empobrecimento da cidade.

Lembramo-nos, então, como poderia ser agora o Funchal: uma cidade, por exemplo, classificada como Património da Humanidade, por ter sido a primeira construída pelos portugueses no Atlântico.

Tanto de singular e de valor – que, na actualidade, poderia ser apresentado como riqueza e atracção turística – foi derrubado pela ignorância, falta de amor à terra, desrespeito pela História e a Identidade Cultural. Sempre em nome da ganância e do dito pugresso. Muitas dessas inqualificáveis atitudes foram tomadas, por certo, no estrito respeito da lei.

Os autores dessas demolições não foram punidos. Penalizados, sim, ficámos nós, as gerações que sucederam aos crimes e as que hão-de vir.

Porque a lista dos imóveis do Funchal desaparecido é tão grande, fiquemo-nos por um só exemplo de ignóbil destruição. Vamos recuar bastante no tempo, para evitar algumas susceptibilidades. Falemos de uma demolição paradigmática: a da célebre casa de João Esmeraldo, onde pernoitou Cristóvão Colombo, na sua passagem pelo Funchal em Junho de 1498, na terceira viagem às «Índias».

Segundo o testemunho de Agostinho de Ornelas e Vasconcelos, era «um grande edifício cuja antiguidade se revelava no seu aspecto enegrecido e vetusto, na sua arquitectura entre gótica e manuelina e na data gravada no capitel da coluna da sua janela principal.» (1892, p. 8)

Por deliberação da Câmara Municipal do Funchal, aprovada por unanimidade em 1876, foi ordenada a sua demolição. Do «aposento antigo muito rico», como lhe chamou Gaspar Frutuoso, resta a referida janela, datada de 1494, num jardim de uma quinta do Funchal. Para a História ficaram as fotografias e o registo indelével da falta de coragem e cultura dos funchalenses, que concordaram com a destruição de um imóvel valioso ou se calaram. Presentemente, tanta falta nos faz essa moradia quatrocentista, para promoção da ilha no âmbito do turismo cultural, em especial, no circuito dos lugares de Colombo.

Imaginemos agora que o prédio da Rua 31 de Janeiro, condenado à morte pelos nossos governantes, era propriedade de um particular. E um dia, esse proprietário, por motivos do seu interesse ou necessidades da sua família, deu entrada na Câmara com um projecto para obras de remodelação, que implicavam alterações na traça do edifício. De certeza, que a Câmara e a Secretaria Regional do Turismo e Cultura, caso fosse chamada a dar parecer, iriam indeferir o projecto, alegando o interesse arquitectónico do imóvel e a sua necessária preservação.

Plutarco (46- c. 119-125) conta que Anacársis criticou Sólon, acerca da sua confiança no primado da lei, dizendo-lhe que «a lei é como uma teia de aranha: se nela cai alguma coisa leve, ela retém; o que é pesado rompe-a e escapa.» (Vida de Sólon, V). Infelizmente, muitas vezes o tempo tem demonstrado que Anacársis tinha razão.

Para um particular, o indeferimento seria o desfecho certo. O Governo pode, todavia, anunciar, como se se tratasse de obra devidamente licenciada, um bloco de apartamentos, cuja construção implica a demolição do edifício pré-existente.

Com péssimos exemplos, que moral têm as autarquias ou o governo para obrigar os privados a preservar construções antigas com valor patrimonial ou condicionar obras de requalificação e reutilização?

Cabe às autoridades, nomeadas para o efeito, a defesa do Património, não a urdidura de artimanhas, a fim de se esquivarem das suas responsabilidades para com a sociedade, que nelas depositou confiança. É inadmissível alguém escudar-se na lei para autorizar a destruição de bens culturais. Isso é lavar as mãos, como Pilatos fez.

Neste caso, a consciência é o melhor conselheiro. Preciso é tê-la, e bem formada!

Agradecimentos: escritora Irene Lucília Andrade, escultora Manuela Aranha e Senhora D. Maria Abreu.