José Leite de Vasconcelos (Cardoso Pereira de Melo) – Ucanha, Tarouca, 07-07-1858-Lisboa, 17-05-1941 – foi “linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo” (cf. O Fundador (museunacionalarqueologia.gov.pt)). É uma figura incontornável para quem quer desenvolver estudos no âmbito da Cultura e da Língua Portuguesas. Todos os anos, em diversas disciplinas (agora, diz-se “unidades curriculares”), procuro repetir várias vezes o nome deste médico que viveu entre finais (Por que razão usamos o plural?) do século XIX e princípios (Usamos mesmo o plural!) do século XX (Talvez “na transição do século XIX para o XX” funcionasse melhor: as possibilidades linguísticas são sempre muitas!). Com uma sede insaciável de novidade, sobretudo nas universidades, devido à investigação, existe a preocupação de renovar as referências, inclusive as bibliográficas, para demonstrar que se está a par do que vai sendo feito e publicado. Por conseguinte, há um apagamento progressivo, quase generalizado, do passado. José Leite de Vasconcelos é um nome a lembrar, por diversas razões. A mais importante, quanto a mim, foi a observação do ambiente em que se movia. Pelos trabalhos que deixou escritos, compreende-se o quanto era observador e pensador, expressando livremente a sua opinião, a sua visão (olhar a realidade permite uma visão do mundo). O seu ponto de vista (novamente o olhar para a relação com o opinar) pode parecer ultrapassado, mas, em muitos pormenores, revela-se de grande pertinência.
José Leite de Vasconcelos finalizou o curso de Medicina, no Porto, em 1886, com uma tese intitulada A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM. Em 1887, esteve à frente da Biblioteca Nacional de Lisboa. Em 1889, fundou a REVISTA LUSITANA, um esplêndido manancial para quem quer compreender a Cultura, a Sociedade e a Língua Portuguesas. Em 1893, fundou o Museu Etnográfico Português (agora, Museu Nacional de Arqueologia) e, em 1895, iniciou a revista O ARQUEÓLOGO PORTUGUÊS. Deu à estampa, como se costuma dizer, AS RELIGIÕES DA LUSITÂNIA, em três volumes, e o BOLETIM DE ETNOGRAFIA, em cinco volumes. Em 1899, publicou obra sobre o mirandês: FILOLOGIA MIRANDESA. No ano de 1901, em Paris, defendeu a tese de doutoramento ESQUISSE D’UNE DIALECTOLOGIE PORTUGAISE, em que refere o português falado no Arquipélago da Madeira, empregando o singular “dialecto madeirense”. Em 1911, criada a Faculdade de Letras de Lisboa, foi professor e conciliou o ensino de latim (Língua e Literatura Latinas) com o de francês, incluindo a comparação gramatical das línguas românicas. No domínio da “Etnografia Comparativa”, produziu SIGNUM SALOMONIS (1918), A BARBA EM PORTUGAL (1925) – deveria interessar aos novos barbeiros que se têm, ultimamente, multiplicado, pelas cidades ocidentais – e A FIGA (1926) – ainda há quem faça figas para que tudo corra bem. Escreveu ANTROPONÍMIA PORTUGUESA (1928) e FILOLOGIA BARRANQUENHA (1940, 1955): o modo de falar em Barrancos é tão famoso quanto outras tradições. A sua obra conta com recolhas de textos literários, como ROMANCEIRO PORTUGUÊS (1958) e, também, CONTOS POPULARES E LENDAS (1964). Possui, igualmente, uma obra dedicada ao TEATRO POPULAR PORTUGUÊS (1974-1979). José Leite de Vasconcelos ainda tem mais publicações, e sobre os variegados assuntos, sendo isso fascinante! Com esta pequena lista, já ficámos a pensar: Como é possível, sem Internet, computadores e a inovadora Inteligência Artificial (IA), que vai cruzando a informação existente, ter produzido tanto, em áreas consideradas, hoje, tão diversas umas das outras? Tenho razão de não deixar esquecer esta figura singular, não tenho?
José Leite de Vasconcelos passou pela ilha da Madeira a caminho dos Açores e visitou os arredores do Funchal. Falou sobre isso no livro MÊS DE SONHO (1924). Foi recebido, no Funchal, por, entre outras pessoas, Eduardo Antonino Pestana, um nome importante, sobretudo a nível regional. Em Lisboa, fora estudante de José Leite de Vasconcelos. Aliás, foi o professor que incentivou Eduardo Antonino Pestana a escrever uma resenha crítica a um estudo de Fonética da autoria de Francis Millet Rogers (americano luso-descente que procurou investigar a pronúncia portuguesa). O tema versa sobre uma particularidade da pronúncia madeirense apontada há muito e quase esquecida. Esse trabalho de Eduardo Antonino Pestana é, para quem se interessa pelo português falado no arquipélago madeirense, uma preciosidade. Aborda o chamado plural em “-i”, como em “ai dez” (às dez), que ainda se vai ouvindo. Se não fosse o incentivo de Leite de Vasconcelos, provavelmente, esse interessantíssimo texto crítico de Antonino Pestana (publicado no volume II de ILHA DA MADEIRA: ESTUDOS MADEIRENSES) não teria sido escrito e teríamos todos ficado a perder.
Na página da Internet do Museu Nacional de Arqueologia (cf. O Fundador (museunacionalarqueologia.gov.pt)), lê-se que, com a aposentação, em 1929, Leite de Vasconcelos lançou as bases de ETNOGRAFIA PORTUGUESA, obra em dez volumes, sobre o “Povo Português, desde a ocupação do território e a vida material, até às superstições, e à religiosidade”, com a vontade de compreender “o Todo do Homem Português”. Quem diz “Homem Português”, diz também Mulher ou pessoas, isto é, a sociedade portuguesa. Foi esta vertente de José Leite de Vasconcelos que sempre me fascinou: o querer compreender a pessoa inserida no seu meio social, envolvida na Cultura, na Literatura e na Língua. Estudar o património é entender o legado dos anciãos da comunidade às gerações mais novas. Quando trabalhamos questões de Património Linguístico, temos obrigatoriamente de nos voltar para trás, a fim de lembrar o passado, isto é, um presente que já foi. Considero-me herdeira de José Leite de Vasconcelos e foi, em grande parte, a influência da obra deste vulto incontornável da Cultura e da Língua Portuguesas que, para o Património Linguístico (Mestrado em Estudos Regionais e Locais (cf. https://www.uma.pt/ensino/2o-ciclo/mestrado-em-estudos-regionais-e-locais/), me levou a procurar compreender o uso da palavra “saloia” associada à tradição das Visitas Pascais ainda hoje, no século XXI, na Região Autónoma da Madeira. O desafio foi lançado a alguns estudantes, que valorizaram a tradição regional.
No livro AS SALOIAS MADEIRENSES: REPRESENTAÇÕES DE UM PATRIMÓNIO LINGUÍSTICO E CULTURAL IMATERIAL, editado pelas Edições Colibri, e de que, no dia 14-04-2023, falei no Clube de Leitura da Biblioteca Municipal do Funchal (cujo convite agradeço), procurei compreender se a tradição se mantinha viva; se existia em todo o território regional e que manifestações tinha/ tem. A minha questão de fundo foi mesmo linguística (cultural e social): De onde vem a designação da tradição “saloia” a nível regional? Com a antropóloga Élia de Sousa, a quem também agradeço a apresentação do livro, lançámo-nos a pensar sobre o assunto. O facto de Élia de Sousa ser madeirense e de ter explicado o quanto surpreendente foi descobrir, em território continental, o uso de “saloio”, bem diferente do de “saloia” (com ligação ao Espírito Santo), evidenciou um percurso diferente do meu. Eu conhecia a palavra dicionarizada “saloio”, com feminino em “saloia”, um vocábulo completamente distinto de “saloia madeirense” ou “saloia do Espírito Santo”.
No DICIONÁRIO DE REGIONALISMOS E ARCAISMOS (cf. Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (ul.pt)) de José Leite de Vasconcelos (uma obra colocada na Internet e gerida pelo Grupo de Filologia do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa), se se pesquisar “saloio”, encontra-se o seguinte dado geral:
saloio, -a
Vid. EP, vol. III.
As siglas nem sempre são funcionais e, neste caso, nem as referências permitem descodificar EP. Procurando melhor, na mesma obra, obtém-se o seguinte material:
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contexto | 1] < > ‘ | saloio | ’. Para os de |
contexto | , 250. A um | saloio | de Bellas ouvi pampôila. |
contexto | saloios no maço respectivo. | | saloio | , -a | Vid. |
contexto | continente a ‘aldeão, | saloio | , provinciano’. Faria |
Por conseguinte, sem entrada específica no DICIONÁRIO DE REGIONALISMOS E ARCAÍSMOS, comprova-se que não está registada a significação que o feminino “saloia” possui no arquipélago madeirense. Uma vez que está generalizado esse feminino a nível local e regional, mereceria alguma relevância dicionarística. Será que José Leite de Vasconcelos não conhecia a tradição pascal madeirense? Evidentemente, se não se divulga não se torna conhecida. Se não se vê, não se pode opinar sobre o assunto. Há já algum tempo que ando com vontade de compreender as razões para o desconhecimento generalizado da tradição das saloias madeirenses a nível nacional. Entretanto, vou continuar a procurar informação sobre o vocábulo.
Eu defendo que a pesquisa se deve fazer em todas as fontes porque nunca se sabe onde se vai encontrar uma informação ou uma hipótese que pode auxiliar na investigação. Procurar dados sobre um passado longínquo (século XV, com o povoamento?), para explicar o uso do vocábulo “saloia”, associado à tradição religiosa das visitas pascais nas ilhas do arquipélago madeirense, tem-me levado a isso mesmo. Vou continuando a observar as manifestações dessa vivência. O povo católico celebra a Páscoa e vai realizando as visitas pascais até ao Pentecostes. Na Boaventura, mais precisamente na zona da Falca, no domingo (26-04-2023), por entre denso arvoredo verde de uma encosta, via-se fumarada e ouviam-se foguetes. As pessoas sabem que são lançados no sítio onde está a decorrer a visita. “É o Espírito Santo!”, disseram-me, como se de uma evidência se tratasse. As saloias acompanham as insígnias e a tradição está para durar, se a comunidade assim o entender. Entretanto, eu vou continuar a procurar uma explicação plausível para o emprego de “saloia” nessa situação religiosa e popular.
Por acaso, ou melhor, porque andava a preparar um outro trabalho, abri o DICIONÁRIO DA ORIGEM DAS PALAVRAS de Orlando Neves (licenciado em Direito, advogado e jornalista, entre outras funções). Nessa obra, está assinalado “saloio” e a entrada faz uma síntese interessante. Esquematizo os tópicos principais:
- Confirma a origem árabe da palavra.
- Assinala a diversidade de opiniões.
- Liga “saloio” a Lisboa (“arredores de Lisboa”).
- Associa “saloios” a “aldeãos que nessa região cultivavam os legumes e fabricavam o pão que depois vinham vender à capital”.
- Identifica a “carga pejorativa” de saloio.
- Remete para a Reconquista Cristã (“que nessas zonas se tinham instalado os mouros, após a conquista da cidade por D. Afonso Henriques”).
- Origem do nome desses mouros (saloios) poderá estar na oração em árabe designada “çala, salah ou celá”.
- Existe outra origem possível: esses mouros (saloios) viriam de Marrocos, mais precisamente de Salé, junto ao rio Regreg e à cidade de Rabat-Salé.
- Viterbo (Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo) – 1744, Gradiz (Guarda)-1822, Satão (Viseu) – foi franciscano e o autor de uma obra com um título longo que se encurta para Elucidário das Palavras, Termos e Phrazes (1798 – a sigla EP?). Terá defendido que “saloio” viria do árabe “salame”, “saudação oriental em que se bate, com os dedos, três vezes, na testa, na boca e no coração (daí os «salamaleques»)”.
- Outra hipótese para explicar a origem de “saloio” estará em derivar de “çalaio”, ou seja, “imposto cobrado aos padeiros mouros” e alargado aos restantes padeiros.
- Segundo o dicionarista José Pedro Machado (1914, Faro-2005, Lisboa), um conhecido arabista, ou seja, especialista em árabe (língua e cultura), e discípulo de José Leite de Vasconcelos (Interessante como quase tudo se liga!), “saloio” virá do árabe “çahrauii” (popularmente “çahroi”) com o significado de “homem do deserto”, sendo os “saloios medievais” da área de Lisboa descendentes de “naturais da República Saraui”.
Ficam tomadas as notas. Vá-se lá saber quem tem razão! É necessário, quando se investiga, não descartar nenhuma hipótese. Provavelmente, poderá suceder que todas se interligam, pela evolução do tempo e das circunstâncias. Como não tenho maneira de as comprovar, não as vou discutir. Retenho-as todas até poder, com certeza e firmeza, ao longo da pesquisa, excluir ou validar alguma. A mim, interessa-me sobretudo o facto de “saloio” ser um etnónimo, ao designar uma população de uma área precisa no território continental português, e de estar ligado ao pão. Aliás, ainda hoje é famoso o “pão saloio” (às vezes, apenas “saloio”). Estaria também relacionado com a vertente rural, pelo cultivo da terra (tendo a significação evoluído de “habitante do deserto” para “habitante do campo”). Assim, os saloios são a população da zona situada entre Lisboa e, sensivelmente, Leiria. De qualquer forma, a investigação tem de prosseguir porque em nenhuma das hipóteses listadas por Orlando Neves está presente o feminino SALOIA (distinto do feminino de “saloio”) e também não vem enunciada nenhuma relação com a celebração das Visitas Pascais, que vão animar os domingos até ao Pentecostes, quer na ilha da Madeira, quer na do Porto Santo. Na festividade do Corpo de Deus, no Funchal, junto à catedral, veremos, como é tradição, algumas saloias. Aliás, a belíssima fotografia de Carlos Cabral (a quem agradeço o presente) para a capa do livro AS SALOIAS MADEIRENSES, composta por Raquel Ferreira das Edições Colibri (a quem também agradeço a criatividade) foi tirada numa dessas ocasiões. Fica o livro para comprovar a vitalidade de uma tradição religiosa, popular e regional madeirense. Quando tiver um tempinho, voltarei aos dez volumes de ETNOGRAFIA PORTUGUESA concebidos por José Leite de Vasconcelos. É assim, para não esquecer o trabalho que já foi feito, sabendo, no entanto, bem que ainda há muito por fazer. O Mestrado em Estudos Regionais e Locais do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira é, por isso, uma mais-valia. Em Património Linguístico e noutras unidades curriculares, vou lembrando José Leite de Vasconcelos. Tenho razão de não deixar esquecer este investigador, não tenho?