Uma sugestão de leitura: Perfume das flores na noite

“Podem trancar as bibliotecas se quiserem;

mas não há portão, nem fechadura, nem ferrolho

 que alguém possa colocar na liberdade da minha mente.”

Virginia Woolf

 

Uma noite no museu ou o projeto de escrita de Leïla Slimani em O perfume das flores à noite (1)

Breve nota biográfica

“Chamo-me noite. É esse o sentido do meu nome, Leilä, em árabe” (Ed. Folio, pg. 72).

A escritora Leïla Slimani nasceu em 1981, em Rabat, Marrocos e vive, actualmente, em Lisboa, Portugal.

Aos dezassete anos, mudou-se para Paris onde estudou Ciências Políticas e onde exerceu, posteriormente, a profissão de jornalista. O êxito da sua primeira obra, No jardim do ogre, determinou, no entanto, a escolha pela escrita literária.

A sua obra inscreve-se no quadro das referências actuais mais relevantes, principalmente após ter vencido o Prémio Goncourt, em 2016. Todas as biografias publicadas são unânimes ao referir os temas da memória e da identidade, dimensões às quais subjazem as da reflexão acerca dos processos de escrita e do que caracteriza um escritor. Os seus livros, onde se incluem registos ensaísticos e de opinião, promovem a militância cívica pela defesa dos direitos das mulheres, em especial as marroquinas, tema que lhe valeu o prémio “Simone de Beauvoir para a Liberdade das Mulheres”.

Um desafio peculiar: a cedência ao paradoxo ou a escrita como claustro

Perfume das flores na noite emana, como projeto de escrita, de um desafio lançado, pela editora de Slimani: o de escrever, no quadro de uma residência nocturna, isolada e solitária, num museu, no seu caso, o Museu “Punta della Dogana”, em Veneza. As primeiras páginas consomem as letras de um paradoxo: o do entendimento da escritora/narradora de que a escrita não é compatível com as solicitações do mundo real porque a perturbam, rompem o fio da criação, em última análise, podem impedir o acto criativo. Para Slimani, o confinamento é uma condição fundamental do escritor que, para tal, tem de saber dizer “não” a todas as solicitações que o possam comprometer. No entanto, o “drama da página branca”, um dia improdutivo e a consequente frustração, fazem com que a escritora aceite o desafio que lhe é proposto e decida partir para Veneza no sentido de o cumprir. A escritora justifica a sua escolha, paradoxal e inesperada, com a possibilidade de poder reunir as condições de enclausuramento que considera essenciais para que o acto de escrita se realize.

A Literatura como viagem, catarse e solidão

Desde o momento em que optou por viajar para Veneza, até ao final do livro, Slimani percorre a História da Literatura e de alguns dos autores que considera mais importantes, propõe-nos um itinerário através do tempo e do espaço da sua escrita e dos palimpsestos que a mesma (não) esconde. O perfume das flores tem aromas intensos de metaliteratura, num jardim textual coberto por lianas que tecem e entretecem a matéria-prima que forma a Literatura nas suas múltiplas relações com todas as formas de Arte.

A almejada solidão propicia a realização de uma outra viagem, catártica, para a qual o leitor é convocado e por cujas interpelações é desafiado a descobrir a intricada tela onde Slimani bordou as cores e os aromas do seu percurso de vida. As suas frequentes reflexões sorvem-se como quem degusta uma casta rara e especial, em boa companhia, nos entardeceres em que o sol encena os tons enigmáticos da melancolia e da esperança.

Uma das referências explícitas e que percorre, ensaisticamente, o texto de Slimani é Virginia Woolf: “a que melhor compreendeu até que ponto a condição das mulheres as constrangia a viver numa tensão permanente entre interior e exterior” (Ed. Folio, pg. 82). Neste sentido, este texto, suscita, ainda, a enunciação dos códigos contextuais que determinaram a sua infância e adolescência, em Marrocos e que ela recusa. A secundarização do papel das mulheres, o recolhimento forçado, a ausência da sua voz (a das mulheres marroquinas) “intertextam” a narrativa do museu no quadro de uma digressão pelo passado da autora e que inclui uma já muito conhecida história ligada ao seu pai.

“A noite, terra dos sonhos onde descobrimos que abrigamos, no segredo do coração, uma multitude de vozes e uma infinidade de mundos” (Ed. Folio, pg. 139)

Esta citação, inserta na parte final do livro, recolhe o projeto de escrita que consubstancia esta história/este ensaio e que enuncia a voz das múltiplas vozes que compõem o lastro cultural e socio-afectivo da escritora.

Na sequência da publicação deste texto, Slimani prodigalizou-se em entrevistas, disponíveis na Internet, onde refere – reiteradamente – um aspecto que determina a sua relação com o espaço e o tempo da Arte e o modo como o contrasta com a Literatura. Este ensaio é, também, assertivamente opinativo: “Poderia advogar contra o turismo de massas, os navios que despejam centenas de visitantes na laguna. Poderia troçar da fealdade dos turistas, da sua vulgaridade e do seu espírito gregário. O turista que se deixa ver como tal, provoca sempre um sentimento de rejeição. Contrariamente ao dandy, que eleva a sua diferença e cultiva uma estética da marginalidade, o turista é o ser deselegante por natureza” (Ed. Folio, pg. 34).

Sem querer “desvendar”, demasiadamente, a obra, no sentido de não pretender produzir demasiados “spoilers” (referências antecipadas que desmerecem a surpresa na leitura), creio ser interessante aludir ao facto de que, ao longo do texto e a par das múltiplas menções e citações literárias, Slimani também “intertexta” o seu ensaio com obras suas já publicadas e com outras que pensa, ainda, escrever a partir de sugestões que este percurso proporciona: “Este mundo desapareceu. E eu não quero revelá-lo. Tornar-se-á uma narrativa/um romance porque só a literatura poderia ressuscitar essas vidas submersas” (Ed. Folio, pg. 75).

O perfume das flores à noite consubstancia uma teoria da Literatura, da sua relação com as Artes (como já sublinhado) e do seu futuro tal como é entendida até aqui: “No Mundo de ontem (Stefan Zweig) traça um retrato pleno de admiração pelo poeta Rainer Maria Rilke. Questiona-se acerca do lugar que o futuro reservará a autores como ele que tornaram a literatura uma vocação existencial” (Ed. Folio, pg. 31).

Slimani discorre como quem participa numa tertúlia com os seus autores de referência e com os seus leitores, interpela-os e “chama a atenção” para perigos dos dias de hoje: “Questiono-me acerca do que teria pensado Stefan Zweig desta sociedade obcecada pela auto-exibição e a encenação da sua existência. Desta época em que qualquer tomada de posição vos expõe à violência e ao ódio, na qual o artista deve estar de acordo com a opinião pública. Onde escrevemos, sob o efeito de uma pulsão, cento e quarenta caracteres” (Ed. Folio, pg. 31).

Este, no quadro da actualidade literária e da reflexão acerca da Literatura/Crítica literária, é um texto de leitura recomendada (arriscaria obrigatória).

O final do mesmo é, em minha opinião, desconcertante. Um excelente argumento para reler um outro livro da autora Le pays des autres, também traduzido em português como O país dos outros.

Boas leituras.

 

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  • No original Le parfum des fleurs la nuit  (a edição consultada para esta recensão é a da FOLIO)

Nota: a tradução das citações é da minha responsabilidade e imperfeição.