
A médica madeirense Carmo Caldeira, encarregue pelo presidente da República de organizar as celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas este ano no Funchal, evocou no seu discurso as palavras do prestigiado clínico e escritor João Lobo Antunes, para frisar que o humanismo na prática médica deve sempre andar a par do desenvolvimento científico. Esta profissional evocou a sua experiência em circunstâncias difíceis, ao lado de profissionais de saúde, da protecção civil e das forças de segurança, no apoio a populações assoladas por temporais, incêndios e outras catástrofes na RAM.
“Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana. Pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se inventou ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão”, enfatizou. “João Lobo Antunes soube colocar em palavras o que também a mim me vai na alma”.
Carmo Caldeira disse estar lisonjeada por, nesta cerimónia, representar aqueles que o presidente da República considera terem sido um comportamento de excelência nesta altura de pandemia, apesar das “carências e improvisos”.
Apelando ao combate ao “desânimo” que pesa sobre a sociedade portuguesa fruto das consequências, inclusive económicas, da pandemia, invocou “a força e a vontade lusitana de enfrentar o desconhecido”, numa época de “grande medo colectivo”.
Lembrou, por outro lado, que “as comunidades portuguesas no mundo, neste Dia, estão mais próximas”. Elogiou os madeirenses, “gente humilde, estóica e valente, trabalhadores incansáveis (…)”.
“Somos audazes”, afirmou, e precisamos de pessoas que “saibam o que está certo”.
Lembrando, por outro lado, que o turismo, principal indústria na Madeira, principiou precisamente pela recepção de pessoas enfermas, por exemplo da tísica, Carmo Caldeira mencionou, por outro lado, a instituição da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, nos finais do séc. XIX. Mais recentemente, elogiou, têm sido dados importantes passos no ensino superior, com a abertura da Universidade da Madeira em 1988 (onde entretanto também se começaram a dar aulas dos primeiros anos de medicina).
Lembrando a glória dos descobrimentos portugueses, recordou também o reverso da medalha, o contacto com terríveis moléstias, doenças infecciosas que causaram epidemias. Estas doenças, ainda hoje, referiu, exigem pesquisas cuidadas, metódicas e céleres.
O facto de a ciência nem sempre ter todas as respostas deve, frisou, ser encarado como natural, dado que o método científico coloca muitas questões, mas não tem muitas vezes para elas respostas imediatas, exigindo aturadas pesquisas. Carmo Caldeira, que apanhou ela mesma Covid-19 (e felizmente curou-se) evocou a cientista lusa Maria de Sousa, que faleceu da doença causada pelo novo coronavírus, para dizer que “o que não se sabe pode desorientar-nos e afastar-nos do essencial”, colocando-nos sob a influência de informações não credíveis, como as propagadas em certas redes sociais.
“Ricardo Jorge, juntamente com Luís da Câmara Pestana, ilustre médico e cientista madeirense, responsáveis por identificar a peste bubónica no Porto em 1899, viu o seu trabalho notável ser recebido com grande ira pela população, por tentar instalar na época um cordão sanitário”, recordou. Alvo de fortes críticas e perseguições, teve de fugir da fúria popular, acrescentou. Acabou por desempenhar um papel fulcral na gestão da gripe pneumónica de 1918.
“As pandemias desiquilibram as sociedades”, admitiu, algo que ainda hoje acontece, e que só pode ser contrariado com cuidadosa coordenação, logística e comunicação.
Carmo Caldeira salientou ainda que a contribuição das Forças Armadas tem sido crucial em determinados cenários de crise, incluindo a actual pandemia de Covid-19.
Homenageando publicamente as vítimas, a oradora considerou que a mesma “interrompeu sonhos” e “suspendeu vidas e afectos”, comprometendo o futuro dos jovens e acentuando o isolamento dos anciãos.
Elogiou o “enorme esforço” feito pelos profissionais de saúde e por todos quantos acolheram doentes e famílias aflitas. E manifestou a esperança de que “todos respeitem” esse enorme esforço entretanto despendido, sem “lugar a apatias e desânimos”.
Defendeu um melhor estudo e preparação para políticas estruturais para o futuro, dadas determinadas situações e assimetrias postas em evidência pela pandemia. “Partilhamos o planeta” com outras criaturas, inclusive os vírus, apontou.
“Enfrentamos tempos de incerteza, em que cada um tem um papel a desempenhar para defender a sua saúde e a dos demais”, referiu.
E considerou absolutamente urgente iniciar programas ousados, que nos conduzam à sustentabilidade na saúde, na segurança social, no planeta. “É nossa obrigação não deixar estas soluções suspensas, para as gerações vindouras”.