O Fogo e a RTP-Madeira

As passas, a contagem decrescente e o dinheiro na mão. Dinheiro invariavelmente pedido ao pai e que já servia para a saída à noite.

A expetativa. A mudança do número. Finalmente o fogo. E o fogo de estalo. Sentir a terra tremer e ver os clarões rasgarem os céus. É qualquer coisa de arrepiante.

Os abraços e beijos. Os desejos de ano novo, sempre melhor que o velho.

Sempre que desço as escadas para brindarmos ao que há de vir penso no meu avô. Quase que o vejo ali sentado. Ainda portentoso. E alto. Muito alto e esguio, mão direita na bengala, de perna cruzada e de postura curvada. Pela altura e pelo peso da idade. Enquanto víamos o fogo no terraço ou na varanda ele via dentro de casa. Na sua RTP Madeira. Aqui vê-se melhor, dizia ele.

Lembro-me que todos os dias ele ligava a televisão uns minutos antes das quatro da tarde. De esperamos juntos que começasse a emissão, especados para o ecrã da bola em grelha. E de vermos “Os Imigrantes”, novela brasileira que me ensinou que nem todos os migrantes são emigrantes. Como os primos do Cabo.

A RTP Madeira era pano de fundo na casa do meu avô. Era a sua fiel companheira. Contava-lhe estórias. Dizia-lhe o que se passou ontem na Ponta do Sol e o que aconteceu hoje no Cairo. Fazia-lhe companhia.

Quando chegou finalmente a TV Cabo, eu divergi. Queria suspirar no Ai os Homens e saber quem era a melhor voz de Portugal. A desse mês, pelo menos.

O meu avô manteve-se fiel. Como a RTP Madeira se manteve fiel a nós.

Que privilégio termos o nosso próprio Canal, pensava eu quando, a fazer zapping, passei pelo Porto Canal. Só recentemente essa Nação teve o seu canal de televisão. Nós não.

Nós sabemos das nossas gentes, dos nossos costumes, das nossas festas e da nossa política no pequeno ecrã. Nós vemos os nossos deputados a debater, nós sabemos que temos uma Madeira que é Viva e sabemos quem desfila no Passeio Público.

Nós temos o privilégio de ter três realidades sempre presentes, à distância de um click. A mundial, para nos contextualizarmos, a nacional, para não nos estupidificarmos e a regional, para sermos mais nós próprios. Madeirenses e Porto Santenses. Ilhéus.

Custa-me é perceber porque é que os profissionais da RTP Madeira, os nossos, tiveram de parar no tempo. Porque têm de fazer tudo isto quase como se ainda estivéssemos naquele ano em que esperava sentada, com o meu avô, pel’ Os Imigrantes.

Custa-me é perceber porque é que alguns dos nossos cameramen têm de andar com quilos às costas, quando todos os seus colegas em Lisboa andam leves que nem pássaros com câmaras digitais. Porque é que temos o único centro analógico do País, quando todos os outros são digitais.

Custa-me é perceber porque são votados a ser profissionais da televisão de segunda categoria.

E como ainda só comi 11 passas, a última já tem dono.

Para a dignidade, a valorização e a justiça cabal no tratamento dos profissionais daquela casa que também é a nossa. E para o meu avô a quem eles tanto deram.

Um Feliz Ano a todos!