Por ocasião das comemorações do último 10 de Junho, o presidente da comissão organizadora, o jornalista João Miguel Tavares sustentou que os cidadãos precisam de causas em que acreditar e que sejam mobilizadoras.
O discurso suscitou inúmeras reacções, quer de aplauso quer de crítica.
Por essa altura, no seu artigo semanal no jornal “Público”, o historiador Pacheco Pereira classificou essa alusão de “nostalgia” sublinhando que o programa único das democracias “é o bem comum, o bem de todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, negros e brancos, católicos e budistas, desde o primeiro dia até aos cem anos”.
Ora, assegurar o bem comum implica e exige que aos cidadãos, a todos sem excepção, sejam garantidos os direitos essenciais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos que Portugal, de resto, subscreveu. De que sobressaem o direito à alimentação, à educação, à saúde, ao trabalho, à habitação, à justiça, à protecção social no desemprego, na doença e na velhice, à cultura e ao lazer.
Quer o País quer a Região foram recentemente submetidos a programas de ajustamento económico e financeiro que penalizaram as respectivas populações e reduziram as capacidades dos governos de disporem de meios para poderem propiciar o aludido bem comum.
E mesmo que se diga que o pior foi já ultrapassado é perceptível que muitos constrangimentos se mantêm.
Lá como cá, mesmo que quem governa teça um cenário mais ou menos paradisíaco, a realidade que bastas vezes é evidenciada pelos media não deixa de suscitar apreensão ao comum dos cidadãos.
Uma das áreas ou sectores em que essa apreensão e desconforto é particularmente visível é, sem dúvida, a da saúde. E de pouco serve ou devia servir dizer, como faz o governo regional, que cá a saúde está melhor do que no continente. Uma vez que se trata de uma espécie de conversa “do roto a rir-se do esfarrapado”! É que convenhamos as carências manifestam-se lá como cá. Dizer que no Continente há hospitais a rebentar pelas costuras, a necessitar de obras, de equipamentos e não reconhecer que, por exemplo, o hospital dos Marmeleiros já não devia, pura e simplesmente, funcionar como tal é procurar deitar areia para os olhos das pessoas. Com a agravante de que a requalificação do bloco operatório e da urgência de adultos do hospital Central do Funchal voltaram a ficar pelo caminho. Falar dos males dos outros e não assumir que a Região tem um grave problema no que concerne à dimensão das listas de espera para consultas, cirurgias e exames complementares de diagnóstico é confrangedor. E de pouco serve, cá e lá, proclamar que há mais médicos, mais enfermeiros e mais dinheiro aplicado no sector se tudo isso se revela manifestamente insuficiente para satisfazer as crescentes necessidades que designadamente o aumento da esperança média de vida das populações vieram colocar.
Idêntica apreensão e desconforto causa saber-se que o acesso ao ensino superior continua a não ser assegurado em pé de igualdade a todos os cidadãos, ou seja que os jovens filhos das classes mais desfavorecidas a ele não têm acesso ou acabam por ter de se contentar com o ensino politécnico. Ou que cerca de um terço dos jovens entre os 25 e os 34 anos em Portugal não concluiu o ensino secundário, uma percentagem que é o dobro da média da OCDE. Ou que uma elevada percentagem da população desta Região não foi além do 9º ano de escolaridade. O que não abona a favor do necessário elevador social. E que põe em causa o direito à igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.
Por outro lado, se é naturalmente positivo que, quer no País quer na Região, o desemprego tenha baixado substancialmente, é fundamental que não se menospreze a circunstância de grande parte do trabalho criado ser de carácter precário e mal remunerado. Um facto com implicações na baixa natalidade como revela um recente estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Como importa não ignorar que o ganho médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem continuava, em 2017, a ser inferior ao de 2011 e que os contratos colectivos abrangiam, em 2018, menos trabalhadores do que em 2010, de acordo com as conclusões a que chegou o investigador Paulo Marques no âmbito do primeiro relatório anual sobre políticas públicas, elaborado pelo Instituto para as Políticas Públicas e Sociais (IPPS) do ISCTE e divulgado na semana transacta.
O capítulo sobre o emprego confirma, aliás, que a utilização de contratos precários para assegurar funções permanentes é um “problema estrutural” do mercado de trabalho português e tem mais que ver com as estratégias seguidas pelas empresas do que com a legislação laboral. Ora, tendo em conta que Portugal é um dos países com maior nível de precariedade da Europa, é manifestamente inadmissível que, desde 2008, esteja prevista uma penalização para quem recorre à contratação a prazo e à excessiva rotatividade laboral, cuja concretização continua por fazer.
Não menos preocupante é o panorama na justiça, não apenas por indicadores internacionais colocarem Portugal como um dos países europeus em que o valor das taxas de justiça é mais elevado e onde existem menos situações de isenção (regras restritas de acesso ao apoio judiciário), uma estratégia apontada como usada para combater a morosidade e o congestionamento dos tribunais, mas sobretudo pelas razões aduzidas pelo sociólogo António Barreto em artigo de opinião inserto na edição do jornal “Público” do passado domingo, 14 de Julho corrente: “Em Portugal, como talvez em raros países do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é autogestão e autogoverno” (…) “Entre todas as instituições, entre todos os titulares da soberania, só a justiça e os tribunais estão absolutamente livres de qualquer mecanismo de escrutínio, contrapeso e reequilíbrio. Todos menos aqueles, estão sujeitos a avaliação, a contrapoder e, quanto mais não seja, a eleição. Justiça e tribunais não estão submetidos a qualquer avaliação ou acompanhamento. A não ser pelos próprios”.
Com efeito, é imperioso “reforçar o escrutínio da justiça sem beliscar a sua independência”, uma vez que há já demasiados magistrados a recorrer ao espaço público para se arvorarem em justiceiros, tentando convencer os incautos de que a salvação da pátria da corrupção e da malandragem, em particular, dos políticos está nas suas mãos e de que apenas neles se pode confiar. Quiçá, tentando criar condições para uma espécie de operação “mãos limpas” à portuguesa. Convenhamos que antes de pregarem moral aos outros, às demais instituições, seria mais ajuizado que, despidos de vestes corporativas, olhassem para a sua própria casa, designadamente para a proliferação de acórdãos que nos envergonham.
A existência de desigualdades a vários níveis é uma outra característica marcante do país que somos como atesta um recente estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que numa análise à distribuição de riqueza em 198 países no período entre 2004 e 2017 concluiu que em Portugal a fatia da riqueza nacional que cabe aos trabalhadores passou de 65,8% em 2004, para 54,5% em 2017. Uma perda de rendimentos dos trabalhadores em favor de detentores de capital que foi a maior quebra registada em toda a União Europeia. Ainda menos abonatório é constatar a enorme desigualdade entre os salários de topo e os restantes. Os 10% de trabalhadores com melhores salários em Portugal ficaram com 30,4% do “bolo” total recebido pelo conjunto dos trabalhadores em 2017. Enquanto que os 10% dos trabalhadores que menos ganharam tiveram que repartir entre si uma fatia de apenas 2,6% de todo o rendimento do trabalho, facto que explica porque é que muitos trabalhadores não conseguem sair da pobreza.
A desigualdade salarial verifica-se também entre homens e mulheres (ganham menos 18,3% do que os homens para a mesma função, uma desigualdade que se acentua quando estamos a falar de profissionais mais qualificados ou quadros superiores). E, por outro lado, na União Europeia, ter ou não ter o ensino secundário completo significa uma diferença no vencimento de 50%, em Portugal essa diferença sobe para 70%.
Por isso não admira que em 2018 a taxa de pobreza ou exclusão social se situasse no nosso país em 21,6%. Em todo caso menos 10% (31,9%) do que a população em risco de pobreza nesta Região. Uma percentagem que devia envergonhar aqueles que proclamam que é a região mais desenvolvida do país ou que a cantilena da autoproclamada “revolução tranquila” proporcionou “desenvolvimento integral”. Com praticamente um terço da sua população à margem desse apregoado “progresso”. Mais caricato ainda é tentar vender a ideia de que são um exemplo no domínio do “social”. E que os outros é que praticam o “assistencialismo”. Como se não houvesse memória. Da distribuição do saco de cimento, das telhas, da areia, dos blocos, etc, em vésperas de eleições, quer através das autarquias locais, quer da caridadezinha tão ao gosto daquelas sucursais do “polvo laranja” que dão pelo nome de Casas do Povo. Para já não falar das inaugurações a que não faltava a espetada da ordem e o vinho à discrição. E para completar o ramalhete o sucedâneo da criatura “inventou” o cheque para a compra dos óculos. Para o pessoal não se enganar na cruzinha em Setembro. Viva o “social”. Abaixo o “assistencialismo”.
Em traços gerais é este o retrato do país e da região a escassos meses de eleições legislativas nacionais e regionais. Realisticamente não é possível pintá-lo a cor-de-rosa nem a negro. Dir-se–á que, apesar de tudo, houve progressos aqui e acolá, mas é longo o caminho que ainda está pela frente.
No já referido relatório anual sobre políticas públicas, coordenado pelo sociólogo Pedro Adão e Silva e pelo economista Ricardo Paes Mamede aconselha-se que o lema a prosseguir seja o de “Menos Reformas, Melhores Políticas”. Em declarações ao “Público” o sociólogo assume que “não precisamos de um ‘Big Bang’ de políticas”, na medida em que iniciar tudo de novo, ”não é a melhor forma para responder aos problemas que temos”, acrescentando que “isto é verdade para a direita, para a esquerda e para o centro”. Paes Mamede reforça a ideia sublinhando que “há uma tendência para os partidos, para secretários de Estado e para ministros de cada Governo quererem deixar a sua marca na história”, concluindo que “muitas vezes, isso é feito em prejuízo das reformas que estão no terreno”. Ou seja, há necessidade de estudo e monitorização das políticas adoptadas, bem como falta de avaliação dos seus resultados.
Com as contas certas e o excedente orçamental alcançado pelo país, haverá agora maiores recursos financeiros para responder às necessidades que são evidentes ao nível de serviços públicos essenciais como a saúde e os transportes. Mas, designadamente o peso da dívida pública no PIB que continua em níveis muito elevados, não garante credibilidade a quem apareça a prometer tudo a todos e para tudo. Isto é, não há condições para uma espécie de quadratura do círculo: aumentos de salários, redução de impostos, investimento público, tudo em simultâneo, quando a “manta continua curta”… Além de que, quando a esmola é muita, o pobre naturalmente desconfia!
Percebe-se por isso melhor a enorme utilidade que agora e no futuro teriam os 24 mil milhões de euros que o Estado (melhor dizendo, os contribuintes portugueses) já injectou na banca para tapar os buracos provenientes das múltiplas poucas vergonhas ocorridas ao longo de mais de uma década. E pelo que se foi entretanto conhecendo sobre as práticas da supervisão financeira nesses tempos, é inadmissível que a reclamada urgência da reforma dessa supervisão tenha ficado pelo caminho, transitando a sua apreciação para a próxima legislatura.
O país no seu todo também só teria a ganhar se a sucessão de casos de alegada corrupção ou de práticas contrárias à lei nas diferentes estruturas do poder, seja autárquico, regional ou nacional, deixasse de constituir uma espécie de “pão nosso de cada dia” e passasse a imperar nos decisores políticos e nos gestores públicos uma cultura de transparência. Sendo certo que este tipo de criminalidade não adveio com a democracia – a sua prática foi também vigente em tempos de ditadura, só que não era objecto de notícia porque a censura não o permitia -, há que reconhecer que se trata de algo profundamente pernicioso para a credibilidade da nossa ainda jovem democracia por alimentar o populismo larvar na sociedade, pelo que é fundamental desenvolver um combate, sem tréguas, a todos estes fenómenos.
*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Post-Scriptum:
1- Escrutínio: Paulo Cafôfo manifestou incómodo por, segundo ele, estar a ser o político mais escrutinado do momento. Já devia saber que, quem anda à chuva, molha-se, a menos que se proteja. Seria, por certo, mais aconselhável que não abrisse a boca para dizer a primeira coisa que lhe sopram ao ouvido, como a de que iria gastar 75 milhões de euros na compra de um hospital e que acabou corrigida com a referência que o montante seria para pagar cirurgias no privado para combater as listas de espera no hospital.
2- Mea-culpa: Confesso que não esperava que o novo bispo do Funchal pusesse termo à suspensão ad-divinis do padre Martins Júnior. Uma suspensão que representa a demonstração mais inequívoca do concubinato entre a igreja madeirense e o poder político regional. Uma relação promíscua que nem nos tempos da ditadura fascista atingiu uma dimensão tão escandalosa.
3- Mais autonomia: Para quê e porquê? Quem nunca aproveitou em pleno os poderes fiscais de que dispõe em matéria de redução de impostos, nem os demais que decorrem da revisão constitucional de 2004, que os Açores há muito consagraram no respectivo Estatuto Político-Administrativo e que faz de conta que não existem, pode ser levado a sério? Chega de conversa da treta.
4- Insistência: O pai da dívida “oculta”, do famigerado PAEF que infernizou a vida de milhares de cidadãos e de “abortos” inenarráveis como a marina do Lugar de Baixo na Ponta do Sol continua a pretender impingir-nos uma autodenominada “revolução tranquila”, uma expressão que só ele e a sua corte mais chegada utilizam. E para cúmulo da pouca-vergonha instalada aparece como figura de proa em tudo e mais alguma coisa (tertúlias, cinema). Haja um mínimo de decoro!
5- Serviço Público? A transmissão em directo pela RTP-M da inauguração de um hotel do grupo Pestana em Câmara de Lobos não lembra ao diabo. O serviço público não devia, não pode servir para promover negócios privados.