O motorista

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Falo  muitas  vezes de viagem.  Ir  pelo  prazer  de  ir  pode  ser  um  legítimo  desejo  de  se  alhear  de  rotinas  e  redundâncias,  de  escapar  à  pressão  do  repetido  e  da  monotonia  em que  se  torna  a  soma  dos  dias. Literalmente  pode  ser  um  simples  hábito  de  vadiagem,  tudo  o  que  se  queira  dizer  sobre  a  tendência  de  deambular  sem destino certo, olhar  sem  ver,  desatento e indiferente  ao  que  acontece; respirar apenas  o ar dum recanto  qualquer  fora do horizonte  diário.  Ser  “cigano do  ar  livre” como disse  alguém.  Recorrendo  ao  óbvio,  é,  certamente,  um  modo  de  arrecadar  experiências, ao arriscar  no desconhecido, procurar aventura  ou  mudança  de  vida  por um tempo necessário  ao  reequilíbrio  das componentes emocionais e das forças  físicas. Sentir-se  liberto  e só, isolado  num  contexto  terapêutico  de  purificação  de  energias.

Mas  a viagem, mais do  que  a busca  duma  ocupação  de  lazer, é  um  processo  de  realização  dum  compromisso  para  os  exploradores  dos  sentidos, que  inclui a capacidade  de  ouvir, de  escutar  o mundo,  isto é,  de  absorver  tudo  quanto,  emanado  do  mapa  humano,  sirva  de  exemplo  e  de  guia  para  a  consumação  dum  comportamento  de  vida  em  equilíbrio  com  uma  sociedade  avisada,  em  âmbito  de  compreensão  e  tolerância  na  adequação de regras básicas  de  acção e  subsistência, autocontrole,  espírito  de análise e sentido  de justiça.

Um  curto percurso num transporte  colectivo  pode tornar-se  um  significativo  meio de auscultar  a voz do povo,  de onde sempre  se  retira  uma experiência de saber.  De  Leiria  a  Lisboa  vão  cento  e  cinquenta  quilómetros  e  duas  horas  de  autocarro. Um  motorista  silencioso  leva-nos  ao  destino,  preocupado  com  uma  condução  segura,  evitando  obstáculos, atento  aos desvarios  de certos  voadores  de  estrada,  irreflectidos  e  levianos,  que  galgam  as  distâncias  como  se  fossem  donos  exclusivos  do  espaço  e  do  tempo.  Confiamos  nele,  no que  transporta  consigo  a  nossa  vida  durante  duas  horas. Olhamos  com  agrado  a  sua  postura,  o  modo  aprumado  como  se  comporta  com  os  passageiros,  a  indumentária  elegante,  sujeita  a  um  ligeiro  uniforme  que o identifica  como  profissional.  É  um  homem  de  meia  idade,  de  cabelos  grisalhos  e  testa  alta  com  entradas  fundas.  Reparo,  por  um  meneio  rápido  da  cabeça,  nuns  olhos  azuis  de  esgar  trocista  e  num  sorriso  indefinido  entre  a  simpatia  e  o  motejo. No  lado  direito  do  autocarro há  uma  bancada, à  frente, destinada  ao  pessoal  da  empresa  rodoviária, geralmente  outro  motorista, que  iniciará  viagem  numa  próxima  estação. Quando  isto  acontece  haverá  certamente  algum  diálogo  e  o  motorista  de  serviço  não  se  sentirá  tão  solitário  ao  comando  de  tantas  vidas. Contudo  o  homem  de  cabelo  grisalho  e  olhos  azuis  não  é  com certeza  um  solitário.  Ao  longo  da  conversa  com  o  colega  que  ocupa  hoje  a  cadeira  suplementar,  se  percebe  que  as  convulsões  do  mundo  não  lhe  são  estranhas  e  fala  delas  com  propriedade  e  acutilância,  usando  uma  linguagem  correcta,  sem os  maneirismos  que  caracterizam  por  vezes  certas  manifestações  de  aculturação. Tranquilamente  vai  declinando  pareceres,  incomodado  com  a  ordem  social  e  política,  com  o «culto  do  objecto»  em  detrimento  da  atenção  aos  humanos. Com  a  perda  de  valores  essenciais  de  relação,  com  a  fragilidade  da  justiça,  com  a  falta de  sentido  crítico  que  conduz  a  lamentáveis  arbitrariedades, incluindo  a  guerra. Refere-se ao  preconceito  e  ao  fundamentalismo  como  grandes  atrasos  na  evolução  do  comportamento  humano. Acrescenta  ainda: «Basta  que  alguém  escolha  o  inimigo  errado  para  atacar  e  logo  uma  batalha  se  declara,  sem  nexo,  dizimando  inocentes.»

O  homem  de  cabelo  grisalho  e  olhos  azuis,  atento  à  estrada  e  aos  seus  pensamentos,  não  se  deixa  distrair. Mantém  regular  a velocidade  do  autocarro  e  percebe-se  que  o  companheiro da bancada  suplementar, ainda  novo  e  certamente  não  tão  preocupado  com os  desígnios  do  mundo,  o  escuta,  acolhendo  em  atitude concentrada  e  atenta os  seus  enunciados  inteligentes. Até  que,  no fim  de  trinta  minutos, ao  concluir  o  discurso,   saudando  amigavelmente  o  companheiro  que  sai  nas  Caldas para iniciar  outra  carreira,  exprime  a  verdadeira   máxima  dos  sábios: « Meu  amigo, não  serve  de  nada  ser  intelectual ou  político, se  não  se  tem  sabedoria.  Sabedoria  é  saber  quando,  como  e  onde  se  deve  aplicar o  conhecimento». E volta  ao  seu  silêncio  inicial,  ao  ritual do  volante, voz  do povo,  imenso  livro, no  qual,  uma  vez  mais  marquei  uma  página.

De  Leiria  a  Lisboa, cento  e  cinquenta  quilómetros  de  distância  e  duas  horas  de  autocarro,  não  só  a  paisagem  dos  campos  e  das  aldeias  se  tornam  a  sedução  da  viagem.  O  motorista observador  e  avisado,  ensinou-me, e  a  quem  de  perto  soube  escutá-lo, que  não  é  necessária  uma  longa  viagem  para  vivenciar  uma  experiência  edificante.