Fotos: Rui Marote
Os historiadores ligados ao Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA), entretanto oficialmente extinto e integrado na Direcção Regional de Cultura como uma direcção de serviços, estão a desenvolver um conjunto de projectos no âmbito de uma perspectiva actualmente seguida pelos investigadores, numa filosofia de memória individual e colectiva dos acontecimentos passados. Não se trata, porém, de uma abordagem baseada em registos oficiais, mas de uma visão memorialista como “um registo não documental dos factos históricos”, conforme apontou Alberto Vieira, que continua a presidir à dita direcção de serviços, ao Funchal Notícias.
É neste sentido que hoje será publicamente apresentado, no auditório do CEHA, à Rua das Mercês, pelas 16h30, o projecto ‘Memórias da Autonomia’.
O historiador explicou ao FN que este trabalho se enquadra numa tendência, numa corrente que está a ser hoje em dia bastante explorada em toda a Europa, e que é a de dar singular atenção aos registos pessoais, “que evidenciam aspectos da vida privada, os quais, muitas vezes, são importantes para uma compreensão global dos factos históricos”.
Os trabalhos historiográficos neste sentido estão a ter impacto significativo, por exemplo na Grã-Bretanha. “Aliás, nós estamos associados a um projecto do King’s College, que será iniciado no próximo ano, relacionado com esta questão da memória, e que tem a ver com aquilo que os ingleses chamam ‘a História vista de baixo'”, esclarece. Hoje em dia, procura-se inverter um pouco a tendência dos trabalhos do passado, que conferiam especial importância à “História vista de cima’, ou seja, da perspectiva das classes dominantes. Agora, insiste o historiador madeirense, é importante que os factos históricos sejam também analisados “de baixo”, ou seja, nas perspectivas individuais daqueles que não foram os actores principais dos grandes eventos, mas que neles participaram de alguma forma, e que deles também são genuínos intérpretes.
“No fundo, a ideia é de que a História seja a junção destas duas perspectivas, que seja mais variada, mais múltipla e completa”. Um pouco como um símbolo que os historiadores do CEHA foram buscar para ilustrar estes projectos: a romã, um fruto que consubstancia em si mesmo a ideia da união de muitas pequenas partes.
Neste âmbito, os historiadores madeirenses conceberam três projectos: um relacionado com a memória vivida e a autobiografia, outro a que chamam “a nona ilha”, e que tem a ver com “a ilha que os madeirenses construíram no mundo”, fortemente relacionado com a mobilidade e a emigração, e um terceiro que é aquele que será oficialmente apresentado hoje, “a memória da Autonomia”.
Conforme nos explicou Alberto Vieira, trata-se “do registo e do testemunho individual de todos aqueles que vivenciaram o antes e o depois do processo autonómico de 1976″. Não só os protagonistas: queremos privilegiar todos”, adiantou.
“Neste momento, já temos duzentas e cinquenta entrevistas realizadas. Felizmente toda a gente tem aceite. Personalidades como o jornalista e realizador Vicente Jorge Silva e várias figuras da oposição política ao PSD aceitaram colaborar, adianta. “Para nós é muito importante, porque a História não tem partido”.
Este é um processo que os investigadores madeirenses do CEHA pretendem continuar, para memória futura. “A nossa ideia é preparar os 50 anos da Autonomia. Agora comemoram-se os 40, mas nós estamos já a trabalhar para os 50 anos, e queremos fazer uma nova História da Autonomia em 2026. Um livro, um registo que incorporará esses testemunhos e toda a documentação que nós estamos a recolher”.
Regressando à colaboração com o King’s College, Alberto Vieira referiu ao FN que a ideia é que os madeirenses façam também parte de uma rede europeia que está em formação: “Temos ligações privilegiadas com alguns elementos do King’s College. Isso ainda está a ser trabalhado, porque em Maio do próximo ano vai haver um congresso em Londres e estamos convidados para apresentar o trabalho que fizemos, e que já foi apresentado aqui, mas traduzido para Inglês”. Trata-se do livro ‘Cartas no intervalo da guerra’, de António e Maria Adelaide, que narra a correspondência entre um soldado madeirense que participou na guerra colonial em Angola, em 1970, e a sua ‘madrinha de guerra’, igualmente madeirense. O primeiro natural dos Canhas, ela natural da Ponta do Sol. Cláudia Faria e Graça Alves, pelo CEHA, fizeram o devido enquadramento da correspondência entre ambas as partes, que faz o retrato de um período complexo na juventude daqueles tempos, sujeita a cumprir o serviço militar obrigatório e a participar em conflitos bélicos cujas razões nem inteiramente compreendia.
“Neste momento, em Portugal, esta é a colecção mais completa da correspondência entre um soldado e uma madrinha de guerra. Normalmente, só se têm as cartas de uma das partes. Aqui, neste livro, reunimos ambas. Tivemos a felicidade de haver alguém que guardasse as cartas de ambas as partes”, explica Alberto Vieira.
Neste momento, os historiadores madeirenses têm já outras cartas de outros madeirenses que estiveram no Ultramar, enfrentando a guerra nas colónias. “Pretendemos trabalhá-las nos próximos tempos”, disse.
Este tipo de relatos da experiência pessoal de grandes momentos históricos é neste momento muito importante porque, conforme releva Alberto Vieira, “nunca como hoje em dia se assistiu tanto a uma tentativa de apagamento da memória”.
Por outro lado, aponta, “também nunca se lutou tanto para fazer o registo da memória. É algo que está a acontecer paralelamente”.
O facto de os historiadores da Região terem ido buscar, para estes projectos investigativos, a designação de memória, não é por acaso. Como também não é por acaso a grande adesão que os ditos projectos têm registado, da parte das pessoas que anteriormente nunca foram valorizadas, mas que agora o são, do ponto de vista do conhecimento histórico. “Sempre que se vê que há tentativas de apagamento da História, há também movimentos que se erguem para impedir que tal aconteça”, salientou. “Muita gente sente que, com a inclusão de experiências individuais nos relatos históricos, se consegue lutar efectivamente contra essa corrente que alastra por toda a Europa, de apagamento da memória”.
O nosso interlocutor aponta que actualmente há uma quebra muito elevada, no espaço europeu, na área dos investimentos nas ciências sociais e humanas, que chega, inclusive, até ao Brasil, com repercussões muito evidentes não só no presente, mas no futuro. “Há várias instituições de ciências sociais na Europa que foram extintas. Uma delas foi o Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa, e o CECIC em Madrid, que também foi extinto. Em momentos de crise, quem sofre é a memória”.
Questionámos: “e é o que acontece com o CEHA na Madeira”. Resposta: “Mas enquadra-se dentro dessa mesma situação, porque quando há uma situação de crise económica ou social, quem sofre são as instituições ligadas à valorização e divulgação da memória histórica, ou que contribuem para o registo da memória”. Geralmente, tudo o que está relacionado com o património imaterial sofre, referimos.
“Não só sofre: desaparece, mesmo”, constata o entrevistado. “Há uma tendência que eu quase diria mórbida, para o seu desaparecimento. Não é por acaso que, em todo o mundo, investigadores das áreas das ciências sociais e humanas desistiram do trabalho que estavam a fazer, para se empenharem a tempo inteiro com projectos relacionados com o registo da memória pública. Sentimos que temos um papel importante a cumprir”, confidencia-nos. “Os problemas económicos e sociais muitas vezes são o resultado de uma ignorância da História, porque muitas das asneiras que fazem são questões que se repetem, e a História só se repete por ignorância dos homens. É nesse sentido que se realizam todos estes projectos relacionados com a memória”, sublinhou.