Até onde é possível viajar, percorrer uma simples rua pode tornar-se um roteiro de especiais atracções e surpresas. Descobrir a história dos lugares passa por ir aos recantos mais recônditos, por onde é possível estender os passos, alongar o olhar, absorver aromas, auscultar ruídos, escutar pessoas. Quanto pode conter uma rua, para além da aparência exterior das fachadas, quanto terá que contar sobre vidas passadas que ali terão existido, sobre memórias colectivas de arruadas festivas ou confrontos funestos, quanta História por desvendar! É já expressão comum dizer-se, citando certo poema anónimo: «As ruas são as veias da cidade», por onde circula o sangue e a energia do povo.
Reproduzo, a propósito, a sinopse dum livro de Jacques Lanzmann que surgiu em 2003 e conta a epopeia duma família que habitou durante a última Grande Guerra na Rua das Roseiras, em Paris: «Lugar magoado pelos séculos e atravessado por sucessivas gerações de judeus, a Rua das Roseiras transporta nomes de mortos e emana um perfume cheio de vida. Conta a história da procura dos gémeos Rosenweig, duas crianças judias que se julga terem sobrevivido ao holocausto». Noam, um possível descendente de um dos gémeos desaparecidos foi criador de rosas, inventor de várias espécies, facto que deu origem ao nome da rua. As ruas não são apenas, pedras, asfalto e concreto armado. São também lugares que contêm memórias vivas por detrás de histórias esquecidas, que, no entanto, terão testemunhado um tempo e dado valor aos seus habitantes. O estudo da toponímia proporciona, por vezes, surpreendentes revelações.
Para além destas circunstâncias, a quem se interessa por viajar pelo país fora, e se cruza com certas figuras, gente anónima, em encontros fortuitos, surgem motivos aliciantes para um certo modo de registar e acarinhar as terras.
Incluídas no complexo arqueológico do Vale do Côa, pertenças do concelho de Pinhel, Cidadelhe, e outras pequenas aldeias seculares, Souropires, Pala, Bogalhal, são lugares que não vou esquecer. Pela sua ancestralidade, pelas suas harmoniosas igrejinhas românicas, pelos vastos campos de vinhas e marmeleiros, pela simpatia e genuinidade dos habitantes.
Cidadelhe guarda um objecto precioso cuidado durante trezentos anos pelo povo que alternava de casa em casa o privilégio de o receber por um tempo. Sem proprietário específico, pertencia â população que o reclamava e, secretamente, ia passando de mão em mão, sem que ninguém pudesse saber que casal o retinha em cada momento. Presentemente, para que possa permanecer intacto, a autarquia guarda-o numa Casa-Forte, na esquina duma rua apertada entre casas de pedra e algumas ruinas, com a promessa de não retirar ao povo o direito de pertença. Uma vez por mês o tesouro de Cidadelhe é exposto ao público e assim, além dos demais visitantes, a aldeia poderá certificar-se da sua existência. Trata-se dum enorme pálio de oito varas, talhado em veludo vermelho, com aplicações de seda, bordado a fio de prata e ouro, com a data de 1776. A aldeia guarda também a grata memória de José Saramago que visitou o pálio e se hospedou ali por uma noite, deixando-lhe o epíteto de «calcanhar do mundo», por constituir uma faixa estreita no extremo norte do concelho.
No dia em que me coube conhecer a preciosa relíquia conheci também uma encantadora visitante, ícone vivo desse pedaço de terra portuguesa, rica de presenças humanas castiças que nos aliciam pela sua pureza e rara espontaneidade. Uma figura de mulher pequenina, sorridente, comunicativa, com uma voz de menina num corpo delicado, longevo de noventa e cinco anos. Acompanhada por tês filhas e um filho, condutor do automóvel que as transportou, vinha toda vestida de preto até ao gracioso chapelinho de palha bem posto. Um vulto negro de estilo único, inimitável. Vinha recordar o pálio que já conhecia. E contou histórias numa linguagem expressiva de quando era jovem casadoira, de quando as vizinhas escondiam o tesouro em suas casas fazendo segredo para que ninguém o visse. De quando se viu mergulhada num mar de folhas secas, duma vez que fora à serra e de como um milagre a salvou da avalancha. Contou, contou, contou episódios, lembranças em catadupa, que a lucidez permitia ainda evocar, com a graça dum vocabulário genuíno e um sorriso contagiante de uma alegria sã. Dentre os filhos, de oito, sobravam sete, e aqueles quatro que a acompanhavam amorosamente, camponeses prósperos a julgar pelas indumentárias e digna aparência. Um grupo singularmente atraente, uma mãe velhinha adorável, com voz mimosa de passarinho, rodeada pela prole atenta e cuidadora dos seus noventa e cinco anos abençoados.
A caminho de Souropires era o solar torreado dos Távoras que nos chamava à povoação, mas foi a presença de um homem novo à porta duma pequena loja de mercearia, a quem pedimos indicações, que nos surpreendeu. O homem sentado num banco baixo retirava pacientemente os grelos das batatas que enchiam um considerável cesto e atendeu-nos amavelmente, lamentando o estado de degradação do solar, com alegações de interesse que nos espantou. Disse-nos do apelo constante dirigido à tutela que tardava em corresponder e mostrou-se muito descontente com a situação. Estranho nos pareceu o seu interesse naquele ápice de tempo que nos fez parar à porta da mercearia. Afinal o homem novo e informado era precisamente o presidente da Junta que cuidava das batatas, em simultâneo com os problemas da autarquia. Ficámos a saber que Souropires é uma aglutinação de Souro Pires e deve o nome a Soeiro Peres descendente da linhagem dos Távoras com solar «ali mesmo no fim da rua».
Aldeias e aldeias deste país onde os habitantes são sempre os grandes obreiros duma história colectiva, apesar de tudo, rica em particularidades que, sobrepondo-se aos mapas turísticos, justificam sempre qualquer viagem até ao fim das ruas.