Como nasceu a Casa-Museu Horácio Bento de Gouveia?

Estávamos no último Natal dos anos 70, Natal esse que nos deu muita alegria porque o avô Horácio e sua família vieram a Santo Tirso. Como o meu pai e família ficaram em nossa casa uns dias, houve tempo para falarmos do futuro da “velha casa “, pois eu e meu marido bem sabíamos da sua preocupação.
Nós e os nossos filhos dissemos-lhe, então, que um dia mais tarde faríamos da casa um pequeno Museu, à semelhança dos vários que visitei na Grã-Bretanha. Isso deu a meu pai tranquilidade e, a partir daí, começámos com o nosso projecto.
O meu marido, Américo Soares, licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, e eu fomos ouvindo o meu pai todas as vezes que nos podíamos encontrar na Ilha ou em Santo Tirso, terra de que meu pai muito apreciava e onde existia ainda uma das pensões onde Camilo pernoitava nas suas deambulações por terras do Douro e Minho, Seide ou Ceide, como actualmente é chamada, e que fica a mais ou menos a 7 km de Santo Tirso. E Horácio Bento era um Camiliano (teve 3 camilianas); o seu maior prazer eram as leituras camilianas, lidas, relidas, e apontamentos nas margens das folhas dos romances.
Lembra-me que, depois que minha mãe faleceu, tão nova, com 44 anos, as férias grandes eram, na maior parte das vezes, passadas em casa dos meus avós maternos e tios, que na época estavam sediados em Vila Nova de Famalicão. Para ele, o melhor dessas férias eram as caminhadas a Seide (3 a 4 km), ler, visitar a casa de Camilo e de D. Ana Plácido, as redondezas, e havia um velho criado da casa que ali vivera e contava a história daquele amor infeliz. Então o escritor regressava pela tardinha, sempre acompanhado de um dos  romances de Camilo Castelo Branco. Tudo e todo aquele drama camiliano, e dos escritores de antanho como o Visconde de Vila Moura, Fialho de Almeida, Eça de Queirós, eram os seus mais amados.
Após o falecimento tão sofrido do meu pai, em 23 de Maio de 1983, “a velha  casa” foi herdada por mim, pois eu vivera ali mesmo no tempo da 2ª Grande Guerra e na minha infância, e o projecto prometido começou a criar raízes. Para mim, a casa eram os nossos antepassados e foi no Arquivo Regional (ARM), ainda na Rua da Mouraria, que iniciei as minhas pesquisas e investiguei todos os Verões tudo o que havia sobre a família Ornellas.
Mentalmente fui imaginando, baseada em factos registados nos velhos alfarrábios e, ainda, nos documentos que Horácio Bento, carinhosamente, embrulhara  dentro de rum saco de pano na sua arca predilecta, no hall da entrada principal, onde ele guardava cuidadosamente  a sua biblioteca primeira,  da sua Juventude, com velhos livros de histórias infantis e muitos livros trazidos do Brasil quando ali se deslocou com o Orfeão Académico da Faculdade de Letras de Lisboa, nos anos  20, fazendo parte da organização.
Com todos estes elementos, que me levaram cerca de dezasseis anos a compilar, a ler e a investigar  no ARM, publiquei no  1º centenário do nascimento de meu pai em 2001, o 1º livro de uma colecção a que dei o nome de “ESCRITOS DA JUVENTUDE”, prefaciado pela minha Amiga Agustina Bessa-Luís, e mais outros 5 volumes ,cada um deles por décadas, intitulados apenas por “ESCRITOS”.
No final dos anos 80, numa das visitas da escritora Agustina e do seu marido Alberto-Luís à Madeira convidámos-los a passarem uns dias na Ponta Delgada; ali, a grande Agustina encontrou mais elementos para o seu grande romance “A Côrte do Norte “, visitando, apenas exteriormente, a imponente Casa do Pico, assim como a nova casa, as ruínas da Capela de Santo António, também pertença  de parentes nossos, e donde nasceram as famílias que juntamente com os fidalgos de Lisboa , deram nome à freguesia de “A Côrte do Norte”.
Uma curiosidade: todas as manhãs, o dr. Alberto- Luís levava à esposa o pequeno-almoço para ela não ser incomodada na sua escrita do romance. Eles preferiram o quarto do meio, virado para a centenária árvore da Canela, única no resto da Ilha, pois apenas o Jardim Botânico do Funchal possuí uma menos frondosa.
Aproveitando a estadia do casal amigo, falámos-lhe do projecto da Casa-Museu, prometido ao escritor, meu pai; e convidámos mais dois casais amigos: o dr. A. Rebelo Quintal e esposa, e ainda os nossos parentes tão ligados à família e à casa, dr. Henrique Romão de Freitas e esposa. Assim reunidos, fizemos uma acta, ficando o compromisso assumido, e selámos por assim dizer o desejo e a promessa feita em vida a Horácio Bento de Gouveia.
Mais tarde, falámos com o Arq. Agostinho, da CMF, que apresentou vários projectos. Em 1993, na vigência da directora da DRAC, Sra. Escultora Manuela Aranha da Conceição, a Casa foi classificada como sendo Património Regional local.
Quer a Escultora Manuela Aranha, quer o Secretário Regional do Turismo e Cultura, João Carlos Abreu, apoiaram e ajudaram à montagem da 1ª Exposição, reconhecendo, assim, a Casa-Museu do Dr. Horácio Bento de Gouveia.
A partir desse dia 23 de Maio de 1998, abriram-se as portas do Museu que se encheu de muitos convidados, amigos, familiares e a comunicação social. A entrevista sobre o acontecimento foi projectada na TV, no noticiário, e, para nós, foi uma alegria enorme termos podido cumprir a promessa feita em vida ao meu querido pai. A montagem da Exposição teve a colaboração do Dr. Pedro Clode. Houve,  ainda,  além das cerimónias religiosas, um concerto da Orquestra de Música da Madeira e palestras em S. Vicente.
Já tivemos um projecto conjunto com a Câmara Municipal de S. Vicente e o Arq. João Cunha Paredes, que não foi por diante; contudo, tenho ainda esperança de a Casa-Museu ser uma realidade que eu gostaria de assistir ainda em vida. A esperança é a última a morrer e acreditamos, depois de tantos anos a lutar para que a casa de um grande escritor da nossa terra, Casa- Museu Horácio Bento de Gouveia, seja efectivamente  um pólo cultural  na “Côrte do Norte”.
O terreno circundante à Casa tem espaço para acolher o “Centro de Estudos Bentianos”. Resta acrescentar que a obra de Horácio Bento de Gouveia já tem projecção  internacional, em países como Itália, Alemanha e Estados Unidos.