Vergonha e indiferença

Quando há praticamente 30 anos – assinalam-se no próximo dia 9 do corrente mês de Novembro – caiu o muro de Berlim que separava as duas Alemanhas, a de Leste e a Ocidental, muitos pensaram que vinha aí um tempo novo nas relações entre os países e os povos e que se quebrariam as fronteiras e as barreiras que os separavam.

30 anos volvidos, não só essas divisões não acabaram, como se ergueram milhares de quilómetros de vedações, de novos muros e, pior ainda, acentuaram-se as divisões mentais, através da proliferação do medo, da raiva e da indiferença.

Na edição portuguesa de Novembro da revista “Courrier internacional”, num artigo que adapta a introdução do livro “A  Era dos Muros – como as Barreiras entre Nações estão a mudar o nosso Mundo”, editado em Portugal pela Desassossego, da autoria do jornalista Tim Marshall, pode ler-se que “milhares de quilómetros de muros e cercas foram erguidos por todo o mundo, ao longo do século XX. Pelo menos 65 países, mais de um terço dos Estados-nação do mundo, construíram barreiras ao longo das suas fronteiras; metade das que foram erguidas desde a Segunda Guerra Mundial surgiram entre o ano 2000 e o presente” e que “só na Europa, dentro de alguns anos, poderá haver mais muros, cercas e barreiras do que aqueles que havia no pico da Guerra Fria”.

O que torna este facto bem mais grave é saber-se que o propósito principal dos muros que vão aparecendo pela Europa é travar a onda de migrantes, o que revela que, em vez de um espaço de acolhimento e de liberdade, a Europa transformou-se numa fortaleza. E pior ainda sem sentir vergonha disso.

Dois acontecimentos recentes são a este propósito particularmente graves e vergonhosos: um deles foi a descoberta no Reino Unido, dentro de um camião, dos corpos de 39 pessoas, de nacionalidade vietnamita, vítimas de contrabando para fins laborais, uma sinistra actividade que, a par da extracção de órgãos, da servidão doméstica e da exploração sexual, afecta cada vez mais seres humanos.

Num artigo inserto na edição online do “Diário de Notícias” de Lisboa do passado dia 25 de Outubro, o ex-ministro e dirigente do PS Paulo Pedroso, faz referência a um estudo recente do University College of London que, a partir dos casos registados no Reino Unido, conclui que ser mulher aumenta 75 vezes a probabilidade de ser traficada para fins sexuais, vir de África aumenta 66 vezes e vir da Ásia 11 vezes a probabilidade de ser traficado para servidão doméstica em relação a vir da Europa e ser homem aumenta a probabilidade de ser traficado para fins laborais.

Nesse texto, Paulo Pedroso aponta o dedo à circunstância da União Europeia não aderir ao espírito dos Protocolos das Nações Unidas relativos à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas e ao Contrabando de Pessoas, ao não separar claramente  o tráfico de seres humanos da ajuda humanitária a pessoas traficadas, sublinhando que “a Directiva 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, usa um conceito que nos envergonha e permite criminalizar não apenas o crime organizado e o tráfico mas  até a acção humanitária”.  Paulo Pedroso acrescenta que “a Directiva também permite aos Estados-membros exceptuar a ajuda humanitária e não impor sanções nestes casos”. Contudo, “segundo um relatório de Dezembro de 2018 do Parlamento Europeu, só quatro países usam essa excepção (Alemanha, Irlanda, Luxemburgo e Portugal)”. O que significa que – voltamos a citar Paulo Pedroso – “para 24 países da União Europeia (até ao Brexit) salvar uma pessoa da morte no mar e entregá-la em terra por razões humanitárias é um crime equiparável a atirá-la para ganhar dinheiro para um camião ou um barco da morte”. O que o leva a concluir: “Há coisas em que a Europa nos envergonha”.

Essa Europa voltou, bem recentemente, a dar sinais de que, pelos vistos, não se envergonha. E esse é o segundo acontecimento que fazemos questão de abordar .

Fez, no último dia do passado mês de Outubro, uma semana que a maioria dos deputados no Parlamento Europeu, por dois votos, chumbou a moção que visava a criação de mecanismos europeus de protecção de vidas humanas no Mediterrâneo. Um chumbo que a bancada da extrema-direita celebrou e gritou entusiasticamente.

Como sublinhou em artigo, igualmente publicado no “DN” lisboeta, a eurodeputada Marisa Matias o momento em concreto “foi a consagração de que o ódio e o medo já são maioritários. Para esta maioria, os milhares de vidas perdidas no Mediterrâneo não são sequer um problema, uma dorzinha, um ataque à nossa humanidade e à nossa capacidade de vivermos em conjunto”.

Esta tragédia assume contornos ainda maiores e mais graves por sabermos que este chumbo contou com a ajuda de dois eurodeputados portugueses e com a cumplicidade de um terceiro que se absteve.

Nuno Melo do CDS/PP  e Álvaro Amaro do PSD foram os deputados que votaram contra a moção e José Manuel Fernandes, também do PSD, foi quem se absteve. Nuno Melo é conhecido pelas suas posições políticas trauliteiras, tendo, há bem pouco tempo, assumido que o VOX, o partido espanhol de inspiração franquista, não é de extrema-direita e Álvaro Amaro é um dos vice-presidentes do PSD de Rui Rio. Mas, como recordava Marisa Matias no já citado artigo, a rejeição da aludida moção só foi possível porque aos eurodeputados eleitos pelos partidos de extrema-direita se juntaram outros pertencentes ao maior grupo parlamentar europeu, o PPE, a que pertencem, quer o PSD quer o CDS.

Numa carta aos referidos eurodeputados publicada na edição online do jornal “Público”, a médica, activista humanitária, Ana Paula Cruz escreveu: “É o vosso nome que assina por baixo desta Europa hoje menos humana, menos solidária, menos casa. É o vosso nome que assina por baixo desta Europa obcecada pela militarização e protecção das suas próprias fronteiras, ignorando – numa indiferença cruel – os que morrem à sua porta”- assinale-se que este é o sexto ano em que morrem pessoas a atravessar o Mediterrâneo, desde que, em 2014, se começaram a registar estas mortes. E actualmente esse número já ascende a mais de 17 mil pessoas. Uma tragédia que não pára de aumentar. Perante uma indiferença que nos devia envergonhar.

Vale ainda a pena recordar, como fez a escritora Patrícia Reis num artigo de opinião inserto no portal Sapo, que as reformas das políticas europeias de migração e asilo estão incluídas num relatório da comissão parlamentar das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos do Parlamento Europeu e que o que se pretendia era “que ficasse estipulado que o regresso de migrantes só acontece quando o regresso significa que o migrante possui um nível de segurança digno desse nome”.

Ora, o resultado da votação no PE revela que a decência, a ética e os princípios foram derrotados.

É isso mesmo que Marisa Matias sublinha no já mencionado artigo: “A maioria dos meus colegas decidiu mesmo que não se devem apoiar as missões de salvamento e resgate, que as pessoas e organizações que trabalham para salvar vidas devem ser criminalizadas, que se devem manter os campos de detenção onde todos os dias são violados os direitos humanos, que não temos obrigação de prestar assistência e socorrer quem precisa, que não devemos assegurar um desembarque seguro, que não deve haver cooperação entre os países para receber quem chega”.

É nisto que se está a transformar a Europa. Num espaço em que, parafraseando Patrícia Reis, maioritariamente se ignora “a situação mortal de tantas pessoas que pedem asilo, de tantas pessoas que fogem à guerra, à miséria, à perseguição, à morte”.

 

*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum:

1) Governos: mais de mês e meio decorrido sobre a data das eleições regionais, o programa de governo continua por debater e votar, na respectiva Assembleia. E no plano nacional, muito embora o acto eleitoral tivesse tido lugar uma quinzena depois, todas as formalidades foram já cumpridas. É caso para questionar: para que serve a autonomia, se nem consegue ao menos funcionar ao mesmo ritmo da República?

Quanto ao resto, há coincidências: na extensão dos respectivos executivos (os maiores de sempre) e no escassíssimo recurso a pessoal fora dos aparelhos partidários. Mas, também diferenças substanciais na presença feminina na sua composição (quase 40% no governo da República, contra 18% no da Região). E ainda outras semelhanças: a aposta na continuidade dos respectivos membros, com a particularidade de que na Região, quem foi dispensado do executivo, acabou por transitar para a direcção de organismos públicos, mesmo que não tivesse formação para tal. E assim, aparentemente, não haverá queixas. Até porque há sempre a possibilidade de aumentar o número de membros de um qualquer conselho de administração para que ninguém fique de fora.

A sorte grande acabou por caber ao parceiro menor da novel coligação. Esmagado eleitoralmente, ficou com a presidência do principal órgão de governo próprio da Região e pôde colocar aqui e acolá o seu pessoal que, em circunstâncias normais, estaria agora à procura de nova vida, como vem acontecendo a nível nacional.

Enfim, foi e tem sido um fartar vilanagem. E a conversa da necessidade de contenção da despesa pública fica remetida para as calendas. Uma descarada sem vergonhice.

 

2) “Reflexão”: após ter feito saber que estava em “reflexão”, a criatura, que deixou como herança o famigerado PAEF, retomou a velha cassete. Assumiu-se pela enésima vez contra o regime, de que beneficiou e a tantos outros, recomenda como solução para o país o “bloco central” que ninguém quer, atira-se à comunicação social europeia, norte e sul-americana de referência, sem precisar qual o jornal em que se revê, quiçá com saudades do “Voz da Madeira” ou do “Jornal da Madeira” que transformou numa coutada pessoal, e, cereja em cima do bolo, vai a um funeral e acusa os correligionários de estarem a “destruir o Partido”. Convenhamos que não havia local mais adequado.

 

3) Vergonhoso: é o mínimo que se pode dizer de tudo o que se sabe sobre o processo que envolve o médico obstetra conhecido pelo “dr.5 minutos”. Desde a falta de controlo dos exames de ecografia até à inacção de um conselho disciplinar da Ordem dos Médicos que corporativamente tudo permitiu. Criminoso e trágico.

 

4) Ilegalidades: As notícias que dão conta que o Fórum Madeira e o complexo habitacional adjacente foram ilegalmente construídos e de que um dos donos disto tudo faz o que lhe apetece em matéria de recolha de inertes são a confirmação de uma prática que decorre do ADN do partido sediado na Rua dos Netos. Não sendo por acaso que, por exemplo, dezenas de anos volvidos Planos de Ordenamento da Orla Costeira nem vê-los. Quanto menos legislação melhor – faz-se tudo à vontade do freguês, desde que tenha poder, é claro.