Uma família madeirense

No início da década de 80 do século passado, João França (1908-1996) escreveu Uma família madeirense. Contudo, só em 2005 foi este romance editado pela Câmara Municipal de Santa Cruz, com um Preâmbulo de Irene Lucília Andrade.

No mês passado, veio a lume a reedição de Uma família madeirense através do original dactilografado, com a chancela da Imprensa Académica e edição literária de Thierry Proença dos Santos, que assina também uma esclarecedora Nota de Apresentação. Este é o n.º 4 da Colecção Ilustres Desconhecidos, planeada com o objectivo de relembrar autores e obras do corpus literário madeirense.

A nova edição justifica-se não somente pelo interesse literário da obra, mas também por fixar o texto de acordo com o dactiloscrito depositado no Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira. Com efeito, conforme verificou e demonstrou Thierry Proença dos Santos, a edição de 2005 não respeitou o original. Pode-se, por conseguinte, dizer que só agora veio verdadeiramente a público este romance de João França, porquanto está conforme a vontade do autor.

A narrativa desenrola-se entre 1936 e 1975, no Caniço, freguesia então predominantemente agrícola e onde também se veraneava nas casas das fazendas.

«Vestido de amor ao chão caniceiro, regalo sempre fora a vilegiatura da família Oliveira na sua casa de campo, isso após dez ou onze meses de canseiras, em cada ano, no lar e nos escritórios no Funchal.» (p. 34)

Bonifácio Vaz de Oliveira é a personagem central. Representa o madeirense apegado aos pergaminhos da sua linhagem e aos valores tradicionais (por companhia tinha sempre a Bíblia e o livro da família Oliveira), salazarista, defensor ferrenho do «Estado Novo», autoritário e guardião da moral conservadora. Nada receptivo às mudanças políticas e sociais, repudiava os ideais da Revolução do 25 de Abril, que o surpreendeu aos 80 anos. Tão-pouco compreendia as manifestações de um povo que conquistara a Liberdade, como também não aceitara a implantação da República, a Revolta da Madeira (1931) nem a denominada Revolta do Leite (1936).

«Quando daquela arruaça por causa dos lacticínios, lembra-se ele de ter dito estarem os homens de bem perante o desabar da instituição cristã do respeito humano. Afinal, via-o agora, era aquilo um quase nada comparado com tudo quanto para aí vai. Então, o sossego voltara ao seu lugar normal. E agora? Como iria ser? Que fariam os bolchevistas, com os seus gritos de liberdade?» (p. 142)

No final da vida, o patriarca da família Oliveira era tolerado e respeitado, mas quase todos os seus parentes próximos discordavam das suas obstinadas decisões e rígidas atitudes.

Até Lúcia, a filha submissa, a quem o pai impusera um marido, tinha plena consciência do mal que o seu pai lhe fizera. Ainda que admitisse ter ele agido na «melhor das intenções», não deixava de considerar que «o pai ignorava a firmeza indestrutível de certos sentimentos do coração de uma mulher». Suscitava-lhe, por isso, inveja a liberdade dos sobrinhos.

A morte da personagem principal determina o termo da narrativa. Representa também o fim do poder patriarcal e de uma sociedade arcaica.

O procedimento de Marta, a sua neta, ao colocar o livro de família, embrulhado numa toalha de linho, debaixo da cabeça do avô defunto, para melhorar a postura do corpo dentro da urna, detém grande significado no contexto da narrativa. Doravante, a nova geração dos Oliveiras não se guiaria pelos padrões dos antepassados. Como sublinhou Irene Lucília Andrade, «todo o peso do passado responsável pela tragédia da família é destruído num acto simbólico» (p. 26).

Sem assumir a dimensão de romance histórico, Uma família madeirense contempla e analisa factos significativos do passado desta ilha no século XX, através da descrição de comportamentos e da construção de diálogos. Todavia, não se pode concluir que o escritor se identificava com as personagens que concebeu. Apenas pretendeu recriar situações cronologicamente verosímeis.

Do que conheço de João França, posso afirmar que, politicamente, o autor do romance não tinha quaisquer afinidades com o comendador Bonifácio Vaz de Oliveira. Mas, por certo, conhecera personalidades, que assim pensavam e agiam no «Estado Novo» e nos tempos do PREC (Processo Revolucionário em Curso) e se tornaram fontes para o desenho da personagem principal deste romance.

Secundando o editor literário de Uma família madeirense, considero que este romance tem lugar de mérito no âmbito da ficção ambientada na Madeira.

FRANÇA, João – Uma família madeirense. Thierry Proença dos Santos, edição literária e nota de apresentação. Irene Lucília Andrade, preâmbulo. Funchal: Imprensa Académica, 2019. ISBN 978-989-54361-3-2.