Até que ponto, esta será uma “silly season”?

O país (está mais do que requentada a referência) parecia viver um certo “estado de graça” para o qual concorreriam as boas relações institucionais ao mais alto nível, uma notória projecção internacional e alguns números/resultados que animavam os portugueses a esperar algo melhor porque já cansados de tantos sublinhados ao catastrófico estado anterior das “coisas”. As múltiplas observações dos organismos europeus ajudavam a compor um quadro que (para os mais incautos) ajudava a esquecer, ou a nem sequer notar, o montante a que ascende, actualmente, a dívida pública portuguesa.
Mas, eis que Pedrógão e Tancos se imiscuíram nesse poema de Ricardo Reis, em final de tarde, e, de uma perspectiva rigorosamente não-partidária, o status quo da felicidade pátria parece ter começado a desmoronar. Inicia-se, então, uma ensurdecedora guerrilha institucional, um sem-fim de declarações, pedidos, críticas e acusações que não só povoou o quadro mais alto do Estado como se estendeu ao verdadeiro estado geral do país: o do “comum dos mortais”. Os partidos, com fortes “armadas” nas redes sociais, logo desencadearam pesadas forças de ataque, defesa, bloqueio e – admitamos – insulto que servem apenas para confundir, ainda mais o já imensamente confuso “povinho”. Pessoas de reconhecida inteligência cedem ao primarismo da indecência política e dedicam-se, com inusitado ardor, à defesa do indefensável, ao ataque soez a quem discorda, à menorização e humilhação, até, dos que ousam questionar seja o que for, num autêntico processo de bullying que teríamos pudor em acreditar não vendo, isto é, não lendo.
O espectro político deteriora-se porque e quando se apouca e diminui. Não raras vezes, tive a grave sensação (qual rememoração proustiana) de ter dado um salto no tempo e estar a viver os conturbadíssimos anos do pós-25 de Abril quando valia tudo até “tirar olhos”. Outros, mais velhos recordariam os terríveis anos 20.
Num quadro político muito vigoroso, Gentil Martins “chutou para canto” e deixou cair sobre si o ódio de um grupo de pessoas que, por via do que defende, estaria já, tantos reconhecimentos (justos e devidos) depois, num patamar mais elevado do que isso. O médico, que se exprimiu de forma grosseira (em minha opinião) nas palavras e na crítica, esteve mal. Mas – haverá sempre um mas – tem direito (como qualquer cidadão) a expressar o seu modo de entender o mundo. Mesmo sendo médico e mesmo tendo desempenhado os cargos que desempenhou. Não precisaria de ter recorrido ao estilo a que recorreu. Mas é direito seu. Democraticamente seu. Poucas foram as respostas de elevado nível que encontrei à sua desgarrada entrevista. Ressalve-se a de um jovem médico, Bruno Maia que – num post público, na rede social Facebook – referiu a sua experiência (que não corresponderá, infelizmente, à de muitos homossexuais) e que – sendo incisivo – não insulta.
Num tom sem precedentes, André Ventura (candidato do PSD à Câmara de Loures) arrasa o politicamente correcto com uma alegada crítica à comunidade cigana. Logo se arrumaram uma série de baterias a taxá-lo de fascista e racista quando, em rigorosa análise das suas palavras, não decorre um ataque racista mas que, concordemos, foi populista, desnecessariamente populista (embora o próprio tenha, posteriormente, declarado com isso não importar-se). André Ventura colocou uma questão pertinente e real. Não é porque há prevaricadores “de colarinho branco” (argumento muito usado nas redes sociais) que devemos admitir, tolerar e até incentivar que o Estado possa colocar seja quem for em situação de favor diante da lei. Todos devem ser alvo das instituições do Estado para que se faça justiça, punindo os corruptos e fazendo valer o Estado de Direito. Poderia e deveria ter elevado o nível da crítica situando-a nesse patamar específico. Ou seja, que enquanto autarca, pugnaria por colocar todos os cidadãos do concelho ao mesmo nível de exigência diante da lei – quer quanto aos direitos, quer quanto aos deveres – não admitido excepções e zelando para que a aplicação dos dinheiros públicos se fizesse de modo criterioso e equitativo face aos necessitados. Poderia e deveria ter assumido o compromisso, caso fosse eleito, de eliminar assimetrias de trato diante da lei, porque tem conhecimento do quanto essas diferenças são injustas para tantos e fazem crer que o poder político adopta medidas diversas consoante a proveniência dos cidadãos. Convocaria, se quisesse, a comunidade de etnia cigana a participar numa sociedade mais justa e equitativa, corresponsabilizando-a por uma ética social que consiste no tal contributo com o “grãozinho de areia” de cada indivíduo.
Todos, mas mesmo todos, sabemos que uma grande parte desta comunidade “sofre” pesadas consequências quando “se afasta” da mesma, quer por casamento fora da comunidade, quer simplesmente porque não cumpre “as regras” e decide escolarizar os filhos, em especial as filhas, evitando, também, que se casem em idades muito precoces. A grande maioria das pessoas que chamou racista a André Ventura sabe disto. E nada disto é sinónimo de que todas as pessoas de etnia cigana sejam isto ou aquilo ou aqueloutro que nos desagrade. As generalizações são sempre injustas e desagradáveis. Mas que – de uma crítica, mal elaborada, convenhamos – não se faça um processo de intenção racista quando se visa apenas a derrota eleitoral do adversário.
Aliás, no Programa Prós e contras, da RTP 1 sobre este tema, foram notórios a desfaçatez e mesmo o ódio de alguns intervenientes, supostamente em defesa da comunidade cigana, mas ninguém se indignou contra semelhantes ofensas. Nem os designou racistas sendo que algumas das declarações ultrapassaram qualquer admissível patamar que houvesse.
Depois, a contagem dos mortos e o obsceno exercício da actividade política. Sejamos claros, a divulgação da estatística relativa ao número de mortos, de feridos e de danos materiais ou outros que possam decorrer de uma catástrofe daquela natureza, é um dever de quem governa e, a sua aferição, um direito de quem lhe concede o poder de governar. Estiveram mal, uns e outros, no modo como se deixaram enredar num “eleiçoarismo” primário e degradante aos olhos dos cidadãos deste país.
O Governo, em minha opinião, claro, esteve mal na condução dos dossiers Pedrógão e Tancos. Deixou uma imagem de incapacidade de gestão de crises que é assustadora. Ninguém duvide que “a mão que segura” é a do Presidente da República que – para este governo – tem sido mais do que referência e apoio institucional: tem sido Pai.
Passos Coelho, suposto líder da oposição, ainda não entendeu que, neste momento, para o PSD, é muito mais um problema do que uma solução. Não terá tido apenas deméritos no exercício das funções de primeiro-ministro, mas concordo com uma alguma opinião publicada segundo a qual o apoio que muitos dedicam, actualmente, ao governo do país, é muito anti-Passos. Costa e o seu Governo (excepção feita, talvez, a Augusto Santos Silva), tal como Passos Coelho e Assunção Cristas, tiveram péssimas prestações públicas na gestão dos dossiers da “crise”. Uns, não souberam estar à altura das exigências que cabem a quem detém funções governativas (cite-se, como agravante, os mais recentes incêndios – que ainda estão activos – e que atestam a ausência de reforço da vigilância na detecção atempada de ignições). Outros porque, confundindo a responsabilidade do exercício de oposição ao poder governativo com eleitoralismo, se refugiaram neste perdendo credibilidade.
Em suma, o exercício do serviço público a que deveriam estar vinculados os detentores de cargos políticos, tem revelado fragilidades de formação e de acção, prenunciadoras, em meu entender, de um (ainda maior) empobrecimento do debate político que conduzirá a um crescente desmerecimento do que se costumava designar como responsabilidade do Estado. Portugal teria e tem, ainda, condições para liderar (leram bem) uma mudança de paradigma dos países do Sul da Europa. Mas afasta-se, de forma célere, dessa possibilidade. Os partidos políticos são os mais directos responsáveis pela formação dos seus quadros e pela sua preparação para o exercício dos mais altos cargos da Nação. Em Portugal, como nos outros países democráticos, em geral, cabe aos partidos políticos a tarefa de propor ao eleitorado o voto que responsabilize o respeito pelo mesmo. Enquanto a Constituição portuguesa assim o determinar, é nela que devemos confiar como fiel depositária dos desígnios da Nação e, assim sendo, de uma aferição política do seu cumprimento. Não podem, então, os partidos propor e mesmo exigir o voto ao eleitorado quando oferecem políticos medíocres, incapazes e cuja ética política se afaste do que à mesma se exige. Uma reiterada oferta ao eleitorado de um conjunto de indigentes da política, interesseiros e desinteressados do Bem comum, serviçais de interesses económicos que visam apenas a apropriação do poder pelo poder, gente que se serve dos partidos como agência de emprego privilegiado (porque bem remunerado e com acesso a benesses múltiplas), levará – mais cedo ou mais tarde – a um estado de desmantelamento do Estado que favorece, como todos bem sabemos, a instalação de poderes absolutos, ditatoriais, mesmo que disfarçados de “exigências musculadas” da democracia. Que não se confunda, no entanto, a crítica com generalização. Mas os indicadores começam a ser preocupantes.
Esta, parece-me, não será uma “silly season”. Não o sendo, que não se tomem os cidadãos por parvos, invertendo as características que cabem, por tradição, a este tempo de verão.
Este país já foi destruído muitas vezes e delas se levantou com coragem, mas com muito sacrifício também. Aos que o minam, no silêncio das suas acções e no barulho da confusão que gostam de lançar, não restará, no futuro, outra hipótese que não a de deixar de serem míseros cobardes autores de crimes de lesa Pátria.
O Citador recorda-me Albert Camus: “A política é constituída por homens sem ideais e sem grandeza”. Até talvez. Mas todo o povo, não.