Outras vozes

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A terra  treme  o  mundo  sobressalta-se, parece  que  uma  nova  deriva  está a  desagregar  a  Pangeia  pacífica  que  a  luta  pela  união  dos  povos  conseguiu estabelecer  depois  das  várias  convulsões  ao  longo  de  séculos.

De  repente,  como  um  vulcão  inesperado,  surge  uma  força  poderosa  veiculada  pela  ambição, a  insensatez, a  prepotência  duma  voz:  Dominar, travar, submeter, destruir.  Por  detrás  do  Atlântico  o  eco  hediondo  propaga-se e  ameaça.  Novo  sinal  apocalíptico  agita  o  silêncio  das  páginas  do  livro  antigo  do  escriba  João. Diz João  que  «a  fera»  surge  e  «governa  toda  a  tribo  e  o  povo  e  língua  e  nação»;  a  fera  tem «autoridade,  poder  e  um  trono». Protagonista  de  conhecidas tragédias  a fera escatológica, adquire uma metamorfose adequada aos  nossos dias, invade  de  novo  a  História, e  prepara-se  para  actuar.  Surge  dum  mundo  obscuro  e  insano,  sub-repticiamente  infiltra-se  entre  o  povo,  traz  promessas abrasivas,  apetecíveis para  alguns, os mais  ignorantes, os  indecisos, menos  avisados,  os  usurários, os  corrosivos das  sociedades. A  fera  veste  uma  pele  humana e tem  várias  cabeças  ao  seu  serviço.

Mas  paro  por  aqui.  Não  quero  alimentar  desesperos,  nem  certezas,  nem  esperanças. Não  me  defendo, nem  ataco. Apenas  constato  e  me  refugiu.  Procuro  outras  vozes,  que  me  alentem,  que  me  purguem  a  alma.   Mais não  sei,  nem  posso.

Então  abro  um  livro  e  leio:

“A  lua  quebra  os  seus  espelhos  nas  ruínas  enquanto  Beirute  faz  muletas  de  sangue  e  cinzas  e  coxeia  com  elas.

É  verdade. O  céu  tem  correntes  à  volta  dos  pés,  e  as  estrelas têm  adagas  presas  na  cintura.

O  dia  esfrega  os  olhos,  sem  acreditar  no  que  vê.

Chora  Beirute,  limpa  as  tuas  lágrimas  com  o  lenço  do  horizonte. Escreveste  de  novo  o  céu, mas  estavas  errada  e  agora  os  teus  erros  escrevem-te.

Não  tens  outro  alfabeto ?.”

Sempre  a  voz  dos  poetas  carregadas  de  verdade  e  inconformismo. Esta  é  de  *Adonis, nome  adoptado  por Ali  Ahmad  Saíd  Esber,  nascido  na  Síria,  refugiado  no  ocidente depois  de  ter  vivido  no  Líbano. Vive  em  França  desde 1980. Conhecido  como um  grande  nome  da  poesia  árabe, esteve  em  Portugal  em  encontros  literários,  foi  traduzido  em  várias  línguas,  inclusive  o  português. A  clareza  deste  poema  não  deixa  dúvidas  sobre  a  martirizada  cidade  que  ele  conheceu,  destruída  pela  guerra e  pela  prepotência  dos  poderes  políticos. Beirute  “escreve-se”  pelos  seus  erros, pelas  ruinas,  pelas  lágrimas  e  pelos  males  dos  seus  estropiados.  Em  tão  poucas  palavras  avoluma-se  a  carga  dramática,  filtrada   através  do  crivo  que  a  confronta  com o cenário duma  paisagem  de  céu  e  horizonte, a   acusar  os  efeitos  molestos  da  tragédia.

E  continua  Ali  Ahmad:

“O  rio  secou.

A tinta  que  escreveu  os  salgueiros  secou. Trevo,  margaridas  e  chicória  selvagem  não  eram os  seus  únicos  poemas. Sê  delicado,  ao  passar,  para  com  esses cadernos  de  apontamentos  espalhados  por  entre as  mãos  da  estiagem. Sê  delicado  para  com  os  dobrados  pescoços  dos  juncos,  as  suas  alturas  quebradas. Sê  delicado  para com  os  ramos  do  choroso  salgueiro  cujas  lágrimas  o  abandonaram.

Rio  onde  está  o  horizonte  que  se  alongou  no  teu  abraço ?

Nem  fonte  nem  bacia. Lama  toda  gretada,  desfazendo-se  em  pó. Paz às  lagoas  que  eram  sinais  de  beleza  na  tua longa garganta.

Paz  a  ti,  rio-túmulo.

Que  testemunho  poderei  gravar  para  ti  e  que  hei-de  escrever  nele ?”

Adonis  continua a  observar  a  paisagem  destroçada, a  lama  seca,  o salgueiro  estiolado  e  lança  um   apelo   magoado  a um interlocutor  suposto,  que  somos  todos  nós  ou   o  seu próprio alter  ego.: “Sê  delicado”, exclama  Ali  Ahmad.  Esta  exortação  comporta   uma  posição  extremamente  sensível  perante  a  necessidade  dos  seres  que  requerem  protecção  e  cuidado. “Paz”,  é a  grande  afirmação,  o  enunciado precioso  que   exprime  o  mais  íntimo  desejo dos  povos. Os  povos metaforicamente  figurados  nos  juncos  das  lagoas  de  pescoço  vergado, e  outros  elementos  da  paisagem. A  figura  expressa  pelo  “salgueiro”  revela  a  capacidade  humana  de  chorar.  Neste  caso, é  tão  elevado  o  sofrimento  que as  lágrimas  secaram. “Paz”,  volta  a  repetir-se  o  vocábulo,  que  é  quase  formulado  como  uma  oblação  diante    da  Natureza,  prece dirigida  a  um  Deus  oculto  cuja  intervenção  o  poeta  deseja. A  existência  dum  “rio-túmulo”, exige um  apaziguamento  e  uma  reverência,  como  se  um  tempo  de  exéquias se  fizesse  sentir  em  homenagem  aos  mortos.

A  voz  de  Adonis  é  a  voz  denunciadora  que reivindica  pacificamente  o  direito  e  o  respeito  à  vida  e  à  sua  beleza. Esta  sim, deve  ser  ouvida.  Recuso-me  à  voz    dos  pregadores  da hegemonia  e  da  prepotência,  fazedores  de  guerra, destruidores do  mundo  e  do  seu  equilíbrio, intolerantes  e  desalmados !  Fujo das “feras”  e  refugiu-me.  Quero escutar  somente  a  voz  dos  os  poetas.

*JUCICE, Nuno, Adonis, O  Arco – Íris  do  Instante, D. Quixote, 2016