A vida é uma casa. Ter vinte anos é como ter uma varanda. O tempo está à nossa frente com todo o espaço em aberto. Depois dos sessenta, há uma porta que se fecha quando se quer esquecer, ou se abre para poder ter acesso à nossa integridade, isto é, para podermos unir os fragmentos da memória que nos tornam, no presente, as pessoa que somos. E o que somos é produto da soma da infância com os anos que vivemos depois dela, sendo a mesma infância a parcela mais poderosa e genuína desta adição que nos acompanha em silêncio ao longo da vida, até ao dia em que uma frincha se abre e alguma coisa se ilumina. Ou alguma coisa se escuta. Como um som. Há sempre uma memória de sons no fundo do tempo: Uma corda que vibra, uma gota que pinga, uma voz que ecoa, um vento que zune.
Às vezes avulta a boca enorme dum amplificador de gramofone e uma melodia de intensas vibrações expande-se em ondas alternadas de alegria, ternura e delicada melancolia. Escuto-a ainda hoje com o mesmo desejo de entrega àquilo que na infância eu percebia ser as ondulações mais perfeitas do sentimento. Não saberia traduzir de outro modo esse toque da alma, senão chamando-lhe de felicidade. Chamar-lhe apenas música parece-me agora insuficiente, uma vez que, não sendo possível defini-la, ficaríamos apenas pelas alusões científicas que a classificam de «exercício de aritmética secreta», ou «movimento aritmético oculto», ou “linguagem simbólica do entendimento inconsciente”, segundo o psicólogo Ehrenzweig ; ou ainda, mais pragmaticamente, como referiu Rameau, uma «ciência dos sons».
Uma “Arte dos deuses” seria talvez a expressão mais adequada para designá-la, mas já se tornou lugar comum.
Antes de se perguntar o que é a Música, seria talvez preferível querer saber de onde vem ela. E como nasce. Tão complexo como querer saber o mesmo sobre a Poesia, ou o gosto de juntar tintas sobre uma tela ou o de querer imitar sobre um palco o voo dum pássaro. Tudo isto tem a mesma origem, como o amor, e faz parte da vida, sem que nada se explique.
Para que esta impressão possa ser partilhada por quem ler esta pequena crónica, comunico que uma das peças musicais que adornava de modo especial certos momentos da minha infância era a “Andaluza” de Enrique Granados que eu ouvia num velho vinil da “His Master`s Voice”, tocada por Yehudi Menuin e Andrés Segovia, uma união feliz entre um violino e uma guitarra espanhola, tendo o piano por celebrante. Estas parcerias de instrumentos celebram necessariamente actos sagrados, quer sejam realizados por grandes orquestras, quer por pequenos ensembles. Mais do que qualquer outra expressão de arte, a Música proporciona momentos de grande prazer anímico e estabelece nas nossas vidas uma plataforma de passagem para o transcendente.
Quando abro a porta da tal velha casa, são estes e outros sons que chegam aos meus ouvidos. Entre Granados, Rachmaninoff e a “Alegria” de Beethoven, mais os tangos, os boleros e os passo dobles, juntava-se o canto dos pássaros e o som do vento nas canas.
O vento forte, ao passar por entre as canas de açucar , extraía uma profundidade sonora semelhante a uma rajada de violinos, essa, que ainda hoje consigo ouvir no “moderato” do «concerto nº 2 , opus 18, em dó menor », de Rachmaninoff.
Nada disto significa afectação ou preciosismo. Trata-se, sim, duma experiência, dessa que nos dá a permanente procura de estímulos, e faz da vida um bom lugar, apesar de tudo o que se sabe de tantas razões destrutivas.
Na minha infância não havia pokémons. A minha obsessão situava-se ao nível auditivo. Eram os sons da Natureza que o meu ouvido procurava e as analogias de prazer que eu encontrava entre eles e a música do gramofone. Ouvir o «concerto nº 2 ,opus 18, em dó menor» de Rachmaninoff ou a «Andaluza» de Granados era tão empolgante como abrir uma frincha da porta e escutar o som assombroso do toque do vento nas canas. Outro tempo, outras virtualidades. Possivelmente menos efémeras e mais saudáveis.