Só hoje, não me chames mulher!

cristina costa e silva

(Cristina Costa e Silva) Não me chames aquilo que tento gritar nos outros dias do ano para que me oiças. Não me lembres que preciso de um dia, ou que tu precisas de um dia, para te lembrares de mim. Não me faças entender esta data como se nas outras todas eu fosse transparente e como se nos dias em que finges não me ouvir eu não ficasse triste.

Não queiras fingir que gostas de mim, hoje, como no primeiro dia, apenas porque no teu trabalho as tuas colegas receberam flores do chefe, elogios dos colegas e homenagens no “facebook”.

Eu estou aqui todos os outros dias do ano. Com os teus filhos, os nossos filhos, que todas as noites me pedem o impossível quando chego cansada do meu trabalho e ainda tenho o part-time que ninguém remunera e tu nunca valorizas.

Sabes, eu sou a mesma a quem durante todos os outros dias do ano tu resmungas pela camisa que não está passada e a quem pedes que te corte as unhas, que te prepare os petiscos para veres o futebol com os teus amigos, depois de eu própria trazer o mais velho da natação e antes de levar a mais nova ao inglês.

Eu sou a mesma que ao longo dos anos tive de manter um emprego que não me realiza, numa função para a qual o meu colega, que por sinal entrou muito depois, recebe mais, apenas porque se convencionou que ele seria capaz de mais do que eu. A mesma que nos 15 minutos que conquistou para ir ao café, vai a correr ao sapateiro buscar os sapatos que na véspera pôs para arranjar, apenas porque tu não o podes fazer por causa dessa tua mania de não andar com sacos na mão, porque não condizem com o fato.

Depois, quando volto para o escritório, sem ter tomado o café de que, não sei se sabes, também gosto, o chefe olha para o relógio e para mim e faz sinal ao meu colega, o tal que ganha mais do que eu, com quem vai para o café durante meia hora falar do tal jogo de futebol que tu vais ver com os teus amigos lá em casa.

Só hoje, não me chames mulher!

Porque quando me levantei de manhã, meia hora antes de ti para te preparar o almoço para levares para o escritório, tinha os braços doridos por ontem ter trazido as compras do supermercado sozinha e a alma ferida porque não trouxe as tuas cervejas e foi a única coisa que procuraste nos sacos que nem me ajudaste a esvaziar.

E nem te atrevas a mandar-me flores para o trabalho ou sequer a perguntares se eu quero fazer alguma coisa especial, que não pode ser ir jantar fora, porque tenho de estudar com os nossos filhos que têm testes, mas é provável que nem saibas, porque eu é que os vou pôr à escola e às reuniões com os diretores de turma. E não queres saber, não por não gostares deles, mas porque isso não passa em rodapé no canal de desporto com quem namoras desde que compraste aquele ecrã gigantesco que para mim não passa de uma moldura de um quadro negro, porque nem tive tempo de a ligar.

A minha relação com a televisão é muito mais distante. Resume-se a um olhar rápido enquanto estou a fazer o jantar na cozinha e a pensar na tua dieta especial, porque o médico disse, na consulta para que tive de te arrastar, que os teus níveis de colesterol eram proibitivos e ainda por cima olhou para mim, como se assumisse que esse era o meu papel na sociedade, a ditar-me os alimentos a evitar.

Portanto, só hoje, aquele dia em que tenho de ser enfermeira, escriturária, dona de casa, auxiliar de sapateiro, governanta, professora e cozinheira, além de esposa e mãe, só hoje, não me lembres que é dia da mulher!