“Há pânico entre os trabalhadores da Hotelaria”

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Fotos Rui Marote

Adolfo Freitas, presidente do Sindicato de Hotelaria, denuncia um clima de “medo e pânico” no seio dos trabalhadores do sector, sujeitos ao atropelo dos seus direitos e à chantagem das empresas. O desemprego é a grande ameaça, e dela valem-se gestores inescrupulosos e muitas vezes aparentemente incompetentes.

A crise atravessa todos os sectores da vida madeirense da mesma forma implacável. Praticamente todas as famílias madeirenses têm alguém desempregado, ou, se não têm, conhecem alguém que está nessa situação, um amigo um um familiar mais afastado.

Mas, sendo a hotelaria e similares um sector vital para o fornecimento de serviços ao turismo que é o motor da nossa economia, é dramático observar de que forma os profissionais, mesmo aqueles com longos anos de experiência, têm sido afectados, não só pelos problemas económicos das empresas, mas pela falta de escrúpulos de alguns empresários, que se aproveitam da crise para despedirem ou inviabilizarem a continuidade de empresas que representavam, para muitos, o seu ganha-pão, safando-se o mais airosamente possível de casos de evidente gestão danosa.

Adolfo Freitas, presidente do Sindicato da Hotelaria, Turismo, Alimentação, Serviços e Similares da Região Autónoma da Madeira, não tem dúvidas de que assim é. E lamenta que a chantagem exercida sobre os trabalhadores quando os processos chegam às vias judiciais desmotivem muitos deles de serem efectivas testemunhas dos abusos sofridos pelos seus pares. Mas compreende que as pessoas temam pelo seu posto de trabalho.

São vários os casos ainda pendentes e que se arrastam na justiça. Dois deles estão na ribalta, dada a importância das unidades hoteleiras envolvidas: o Madeira Palácio e o Regency.

O primeiro encerrou em 2006 por motivo de obras, mas desde então atravessou um processo longo e carregado de peripécias, afectando 110 trabalhadores. As obras continuam paradas.

“Na altura em que o hotel encerrou para obras, ninguém perspectivava que viesse a suceder a falta de financiamento, através do BCP, a partir de 2009, para a sua conclusão”, diz Adolfo Freitas. Os trabalhadores, entretanto, tiveram de recorrer ao subsídio de desemprego, suspendendo o contrato de trabalho. Para muitos deles, o subsídio acabou, e, na impossibilidade de, devido à crise económica e financeira, obter outro posto de trabalho, acabaram por contentar-se com alguns acordos com a empresa Cunha e Santos, recebendo um mínimo daquilo a que teriam direito.

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“Houve situações dramáticas de casais de trabalhadores que tiveram que entregar a casa ao banco, porque trabalhavam os dois no Madeira Palácio, marido e mulher, e porque infelizmente a Segurança Social, nestas situações, pouco ou nada apoia, porque entendeu que os trabalhadores não tinham direito aos subsídio social de desemprego porque tinham casa… É uma lacuna que existe na lei, porque não basta o trabalhador ter casa, é preciso saber se de facto a casa é dele ou se está penhorada pelo banco… São situações a que a Segurança Social não tem atenção”, denuncia.

Alguns trabalhadores do Madeira Palácio (7) iam-se safando a trabalhar em apartamentos que estavam à venda, mesmo ao lado do hotel, dos quais 125 estão concluídos, prontos a habitar, havendo alegadamente 250 compradores interessados. Os apartamentos destinavam-se a dar lucro e a pagar as obras do hotel. “Foram concluídos, mas infelizmente o BCP em Maio deste ano, de forma surpreendente, mandou encerrar definitivamente os apartamentos, onde haviam trabalhadores nos ‘standards’ para receber visitantes e procurar vender os andares, e para assegurar a manutenção dos apartamentos restantes. Ninguém consegue ter uma explicação. O BCP tem aquilo bloqueado, e não ata nem desata”, queixa-se o nosso interlocutor. Outros trabalhadores, apesar de não estarem ocupados e aguardarem em casa o desenrolar deste imbróglio, continuam a pertencer à empresa e a esperar uma solução, tanto que desde 2013 já foram feitas múltiplas reclamações no Tribunal de Trabalho contra a Lingnum-Investimentos Turísticos da Madeira, por falta de pagamento.

Ninguém consegue, realça Adolfo Brazão, perceber porque não se quer vender os apartamentos. Perante esta situação, foi decidido em assembleia de trabalhadores pedir a insolvência da empresa, situação que ainda está a decorrer, “até para chamar o BCP à razão, porque teria de prestar também a sua responsabilidade neste processo”. Há múltiplos trabalhadores afectados. Adolfo Freitas acusa a Lignum de ter negociações não declaradas com o BCP, que os trabalhadores e o sindicato não sabem quais são. E esclarece que o facto de os trabalhadores pedirem a insolvência não quer dizer que a mesma tenha obrigatoriamente de se concretizar. Pode ser uma maneira de fazer “a outra parte ceder ao que são as reivindicações e os direitos dos trabalhadores”. Aguarda-se neste momento a decisão do juiz e a nomeação do administrador de insolvência.

Há trabalhadores que já não recebem praticamente nada. Alguns estão a receber 180 euros do rendimento social de inserção. Outros recebem ajudas do Instituto de Habitação para pagamento de rendas, cerca de 200 euros. Mas a maioria vai vivendo de expedientes e de ajudas familiares. “Têm passado muitas dificuldades”.

O Regency, da empresa Cunha e Santos, é outro “imbróglio, no qual não houve coragem que fosse feita justiça”.

Adolfo Freitas denuncia que “ninguém consegue perceber como é que uma unidade hoteleira de 5 estrelas, que tinha uma ocupação diária na média dos 80 por cento, com anos fabulosos de turismo na Madeira, que não tinha salários em atraso nem outras prestações pecuniárias dos trabalhadores, consegue arranjar uma dívida no valor de 35.664.696,09 euros”.

Considerando tal situação incompreensível, Adolfo Freitas acusa as Finanças e a Segurança Social de inoperância: se se tivessem começado a movimentar quando se detectou o acumular da dívida, e tivessem tido uma intervenção “mais responsável e mais activa, no início” as coisas não chegariam a este ponto.

“Não se consegue compreender como é que a Fazenda Pública deixa chegar ascender as dívidas a milhões, e só vem reclamar os seus créditos na insolvência”, sublinham. O que poderia ter acontecido, se têm actuado, é que houvesse uma nova administração a gerir o hotel, todas as contas estarem bloqueadas pelo próprio tribunal, como aconteceu a dada altura no Madeira Regency Club, quando houve contas sob gestão de um gestor do BCP… Agora  ninguém compreende como se deixaram as coisas chegar a esta dívida. A verdade é que os 110 trabalhadores, que deram o seu melhor naquela unidade hoteleira, é que acabaram por ser as vítimas desta situação”.

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Adolfo Freitas denuncia ainda mais: “Em muitos casos, a insolvência serve como uma solução para salvar a pele dos criminosos. Para esta empresa, antes de estar na insolvência, foi pedido o PER, o Plano Especial de Revitalização. Claro que quando foi feito, teve a intenção de impedir que a empresa fosse à insolvência. A verdade é que o PER, na maioria dos casos, não é para salvar a empresa, mas para salvar a pele daqueles que desviaram os dinheiros para outros fins e não para os objectivos da empresa, porque depois têm a oportunidade de dizer no tribunal que requeriram o PER, esteve sob a orientação de um administrador de insolvência, e foi este que chegou à conclusão que não havia condições para continuar o PER, e daí avançar com a insolvência”, lamenta.

A 27 de Abril deste ano, o BCP e o Novo Banco, os maiores credores da dívida do Madeira Regency, rejeitaram uma proposta para uma nova administração e para o hotel continuar em funcionamento, cumprindo um plano de pagamento às instituições credoras.

“Para surpresa de toda a gente, o BCP e o Novo Banco queriam encerrar já o próprio hotel nesse mesmo dia, multiplicando-se os apelos de várias entidades, inclusive judiciais, para que tal não acontecesse, dados os custos que isso iria acarretar… encerrar um hotel em Abril, completamente cheio”, critica o nosso entrevistado.

Aqui está mais uma lacuna da lei, frisa Adolfo Freitas: o próprio tribunal não tem poder para contestar as decisões da assembleia de credores. “Se não fosse o apelo feito, e o bom senso dos representantes do BCP e do Novo Banco, o hotel encerrava mesmo nesse dia, numa segunda-feira, tendo de deslocalizar todos os hóspedes para outras unidades à pressa”. 30 de Junho foi o último dia de trabalho dos funcionários do Regency. Há situações aqui “também dramáticas”: trabalhadores “que deram o seu melhor vão reclamar à massa insolvente, mas pouco ou nada obtêm”.

“Vão obter algum valor do fundo de garantia salarial, mas lá se foi o posto de trabalho, e anos de profissionalismo e de sacrifício de muitas horas não foram levados em linha de conta. Sabemos que houve intervenções da Secretaria de Turismo, bem como nós próprios tivemos, no sentido de evitar esta situação, mas o BCP e o Novo Banco não estavam dispostos para o apelo que foi feito. E estes trabalhadores do Regency foram juntar-se aos do Golden Gate e aos do Yacht Bar, que infelizmente no ano passado viram a sua situação agravada”.

Entretanto, no sector da panificação, a situação é igualmente calamitosa: na Padaria Oliveira e Silva, que empregava 28 trabalhadores, este ano, depois da empresa ter pedido um PER, a 28 de Maio também foi decidido pela insolvência da empresa. Valor em dívida: 1.017.018,03 euros.

Além desta padaria, também a Panmol e a padaria A Lua se encontram em situação lamentável. A Panmol tem uma dívida de 869.070,17 euros, e envolve 15 trabalhadores. Na ‘Lua’ há seis trabalhadores envolvidos e a assembleia de credores decidiu, a 2 de Junho, pelo encerramento da empresa e liquidação, proposta apresentada pelo administrador de insolvência. Valor da dívida: 220.769,31 euros.

Não esqueçamos a padaria Pastipan, em Santa Cruz, encerrada a 30 de Abril, que o proprietário deveria passar para a sua irmã a 1 de Maio, tendo sido solicitada a intervenção da Inspecção Regional do Trabalho. Já deu entrada no Tribunal do Trabalho uma acção contra o transmitente e a adquirente. A 8 de Junho os 7 trabalhadores envolvidos fizeram a suspensão do contrato de trabalho invocando o salário de Maio em atraso. O processo aguarda desenvolvimentos.

“Além destas, já tinham ido a Aripan e a Panisal”, lamenta Adolfo Freitas, apontando ainda o caso da padaria do Porto Santo, em que 16 trabalhadores pediram a suspensão do contrato de trabalho, em 23 de Abril, em virtude de terem ainda a receber 50% do salário de Fevereiro, além dos meses de Março e Abril.

A 21 de Maio, em reunião com os trabalhadores na Delegação Sindical do Porto Santo, foi decidido requerer a insolvência da empresa, estando neste momento a serem tratados os documentos formais.

Para o sindicalista com quem falámos, “não se consegue compreender, empresas desta natureza, que fabricam pão todos os dias… Poder-se-á dizer que o pobre nem todos os dias come carne e peixe, mas pão, pelo menos, tem de comer, pois é o alimento mais barato que tem. Quando empresas destas vão para a insolvência, há coisas aqui que merecem alguma explicação e mais alguma intervenção judicial no sentido de se saber como é que estas empresas, que todos os dias têm laboração, acabam insolventes… desta forma surpreendente”.

Adolfo Freitas admite que é verdade que há clientes que ficam a dever. Nomeadamente, havia queixas de algumas padarias que trabalhavam para escolas e que o Governo Regional também não lhes pagava atempadamente… mas, para o responsável do Sindicato de Hotelaria, isso não pode servir de desculpa.

“Por detrás disto, poderá haver outras situações que acarretaram prejuízos sérios, sendo que os trabalhadores acabaram por ser as maiores vítimas”.

Prosseguindo o seu rol de catástrofes, o sindicalista denuncia ainda a situação da ‘Sabores Líricos’, que reunia as lojas de Jorge Sá, os cafés existentes nos supermercados, as Severas… A 20 de Julho, uma assembleia de credores decidiu pela liquidação do património da empresa e seu encerramento. “Claro, não havia património, não havia nada… Os trabalhadores que tinham transitado já dos supermercados Sá para a ‘Sabores Líricos’ conseguiram manter os seus postos de trabalho numa nova empresa que começou a explorar estes estabelecimentos, mas os outros, que tinham sido contratados pela ‘Sabores Líricos’, acabaram por perder o seu trabalho”. Vão agora reclamar os seus créditos junto do Fundo de Garantia Salarial.

Adolfo Freitas analisa com muita cautela a exuberância do Governo Regional relativamente ao estado actual do sector turístico-hoteleiro na Região.

“Apesar do aumento da entrada de turistas, do aumento de receitas, a verdade é que os trabalhadores, infelizmente, há três anos que não sabem o que são aumentos salariais. E isto também tem a ver com a denúncia do contrato da hotelaria feito pela ACIF, com o objectivo ou de retirar tudo o que são direitos do Contrato Colectivo de Trabalho, ou então, de impor um CCT que é completamente impossível, inaceitável e inadmissível em pleno século XXI. Inclusivamente, querer impor horários de trabalho de 12 horas e 60 horas semanais, quer em termos de banco de horas, quer em termos de regime de adaptabilidade, alterar os horários dos trabalhadores sempre que entendessem que era necessário, os dias de descanso, trabalhar feriados sem serem compensados financeiramente, sendo a entidade patronal a escolher”…

O nosso interlocutor salienta que a hotelaria não é como o comércio, abre às 9 e fecha às 7… É uma indústria que oferece serviços aos clientes, a qualquer hora, e que têm que ser satisfeitos.

“Os trabalhadores têm que estar disponíveis nos seus dias normais de trabalho e também em dias de descanso… um trabalhador que entra na hotelaria nunca sabe se, no seu dia de descanso, vai descansar ou não. Como também não sabe o que são feriados, o que são festas como o Natal ou o fim-de-ano… Normalmente são sempre contactados para trabalhar, devido ao afluxo de turismo”.

Dados todos estes condicionalismos e as exigências da ACIF, o Sindicato pediu a intervenção administrativa do Governo Regional, aguardando reuniões no sentido de ultrapassar os obstáculos.

Ou seja: há anos que não há aumento de salários, mas há aumento de receitas para empresas, que ainda por cima beneficiaram, durante dois anos e meio, da suspensão do que estava nas convenções colectivas quanto ao pagamento de trabalho prestado em dias feriados e em ocasiões de trabalho suplementar, que era compensado em descanso, “ainda temos trabalhadores que só vêm a receber o salário não no último dia do mês, como respeita a lei ou o CCT, mas en nuitos casos no dia 7, 10 e 15, e às vezes só em prestações”.

Esta é uma outra situação em que o Sindicato está “de mãos atadas”.

“Sabemos que há empresas que pagam os salários tarde e mal, mas o problema é como é que o trabalhador ganha coragem de fazer a denúncia. Ele tem medo. Há algum tempo atrás, os trabalhadores vinham ao Sindicato, apresentavam queixa mesmo em nome pessoal, queriam receber o seu salário, mas chegavam à empresa e eram discriminados, eram perseguidos, humilhados, e até muitas vezes até punham o trabalhador sem fazer qualquer tarefa, como discriminação ou humilhação. Hoje em dia, temos conhecimento de situações irregulares”, confessa Adolfo Freitas, “mas os trabalhadores nem querem que se faça nada”.

Isto “devido ao medo que têm, porque se implementou dentro do sector da hotelaria o pânico”, denuncia. É que se os trabalhadores forem reclamar, ouvem ameaças dos patrões de que fecharão, pedirão a insolvência, mandarão os trabalhadores para o desemprego… E é claro que as pessoas conhecem outras situações bastante dramáticas e similares, as coisas não estão fáceis, e quando conseguem um emprego não é um verdadeiro emprego mas uma situação excepcional e precária, sem qualquer vínculo e apenas em troca de alguns euros pelo trabalho prestado, e sentem-se inseguros e acabam por ceder.

“Temos pessoas com reclamações para fazer, de feriados, de diuturnidades, e acabam por não querer reclamar, devido às ameaças que têm das entidades patronais, e o medo que se instala dentro das empresas”, confirma.

Hoje houve manifestação dos trabalhadores do Regency.
Manifestação dos trabalhadores do Regency.

Adolfo Freitas faz uma leitura confrangedora para uma Madeira que já viveu a Revolução dos Cravos há muito tempo: “Há défice de liberdade. O trabalhador não se pode manifestar dentro da empresa. Inclusive há hotéis que os próprios comunicados do Sindicato, já não querem que sejam espalhados nas mesas dos refeitórios, nem das salas de convívio. Isto é uma forma de pressão. É evidente que as empresas têm de colocar à disposição dos delegados sindicais um meio para eles poderem dar a conhecer toda essa informação. O facto de não quererem que se distribua a mesma nos refeitórios ou nas salas de convívio já é, à partida, um indício daquilo que as empresas querem fazer: afastar a informação dos trabalhadores”.

Ora, um trabalhador que tem medo de lutar, é presa fácil na mão do patrão. Não reivindica, não contesta, não reclama os seus direitos, mesmo que alterem os horários, os dias de descanso, as funções. Cada vez que consente, não só vai ficando mais humilhado, como a sua situação se vai agravando.

“Se houver um trabalhador que tem um caso em tribunal, não sabe a dificuldade que é arranjar testemunhas para vir defendê-lo. Para mentir defendendo o patrão, muitos fazem-no sem medo algum. Mas para falar a verdade, infelizmente é muito difícil encontrar, dentro de uma empresa, colegas de trabalho que venham defender os outros, mesmo sabendo que eles estão inocentes. Temem as represálias que sobre eles se abaterão” – sentencia.

“Isto, só por si, já é demonstrativo do pânico que hoje se vive dentro das empresas de hotelaria. É um terrorismo social que as empresas impõem aos trabalhadores, com o medo do desemprego”.