Estreito dá festa e vinho, mas reclama visibilidade e proveitos

Começa hoje a Festa das Vindimas no Estreito de Câmara de Lobos, mas bem pode dizer-se que a azáfama à volta das uvas e do vinho já leva largos meses. O Funchal Notícias subiu até à freguesia que, por estes dias, cheira ao respirar da terra. Ouviu os locais, os autarcas e os que andam na roda viva à volta das parreiras e dos lagares, mantendo paisagens e tradições seculares. A produção deste ano promete não desagradar, mas o Estreito quer mais visibilidade no investimento e na promoção turística.

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Este sábado, com as vindimas e a pisa das uvas, espera-se nova enchente no Estreito.

No centro da freguesia sente-se já a animação no ar. Ultimam-se os preparativos nas decorações, nas luzes, na montagem dos palcos e dos sistemas de som. A principal rua do Estreito de Câmara de Lobos encontra-se já fechada ao trânsito e os trabalhos prosseguem a bom ritmo. Tudo se conjuga para que a 38ª edição da Festa das Vindimas, o mais antigo certame de promoção do Vinho Madeira, conforme a organização faz questão de sublinhar, repita o sucesso dos anos anteriores.

Enquanto os técnicos trabalham, alguns homens mais velhos apreciam a azáfama encostados à porta do café. As mulheres passam com os sacos de compras, para a rotina do almoço. Não há grande disponibilidade para entrevistas, mas não escondem a satisfação pela antecipação da festa na freguesia.

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Sara Freitas orgulha-se da sua terra. “Aqui é que cheira a vinho”.

Estreito cheira a vinho, cidade é maresia

Afinal, é na zona privilegiada das latadas e dos vinhedos onde se encontra a verdadeira alma do Vinho Madeira. “É como diz o nosso presidente. O vinho cheira é no Estreito, na cidade é maresia”. A provocação atrevida vem de Sara Freitas, que aproveita a presença da equipa de reportagem e do presidente da Junta de Freguesia para reclamar o estatuto há muito devido à sua terra.

“Não acho justo fazerem a festa maior lá em baixo, na cidade. Deviam trazer cá para cima toda aquela animação”, defende. Gabriel Pereira, o autarca, lá vai deitando água na fervura, recordando que os espaços têm dimensões e objetivos diferentes, mas D. Sara não esmorece na defesa pela sua terra. “Isto é um encanto. É tudo gente humilde, de vez em quando há umas zaragatas, mas é tudo amigo. A Madeira é toda ela um jardim e não devia haver estas diferenças”.

Estreito é marca registada

Passado o ímpeto da reivindicação, Sara Freitas concentra-se na festa. Começa hoje, logo à tardinha, pelas 19h00, com o torneio de futebol das Vindimas. Depois será música pela noite dentro. A senhora ensaia alguns passos de dança assim que se fala da dupla sertaneja “Lucas & Mateus” com atuação prevista para as 23h00. “Já bailei muito, as pernas é que agora não aguentam”, graceja, convidando locais e turistas a virem experimentar da alma do Estreito.

O ponto alto do evento, que começou em 1963, está marcado para amanhã. São esperadas mais de 5 mil pessoas no centro da freguesia, durante a manhã, para participar nas vindimas, na pisa e na repisa da uva ao vivo. À junta de Freguesia, entidade organizadora em parceria com a Associação Cultural e Recreativa do Estreito, chegaram contactos de unidades hoteleiras para reserva de lugares nas equipas de vindima e no lagar. “Há um grande grupo de alemães interessado e que está cá na Madeira especialmente para participar nesta experiência”, conta Gabriel Pereira.

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Gabriel Pereira, o presidente da Junta, quer reconhecimento do Estreito como centro de enoturismo.

A experiência mostra que são momentos muito participados quer por locais quer por estrangeiros, ao experimentarem no terreno a magia e a dureza do processo que envolve a produção das uvas e do vinho. É na genuinidade e na espontaneidade que o autarca quer continuar a apostar para potenciar a localidade como centro de enoturismo. Em 2014, a autarquia pegou neste conceito e registou a marca “Estreito de Câmara de Lobos, Terra de Vinho”.

“Quem viver esta experiência nunca mais esquece e torna-se um veículo de promoção não só do vinho como da Madeira e do concelho”.

Atualmente, a freguesia conta apenas com uma unidade turística, o Hotel Quinta do Estreito, uma das entidades que apoia o evento, a par da Secretaria Regional da Economia, Turismo e Cultura, da Câmara Municipal de Câmara de Lobos, da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas e do Instituto do Vinho, do Bordado e Artesanato da Madeira. O autarca espera, porém, que o Estreito não seja lembrado apenas por altura das vindimas, mas que os apoios se façam sentir em outras ocasiões de forma a atrair empresários a investir no sector do turismo.

Produtores à margem do lucro

Por enquanto, a principal fonte de riqueza da freguesia é mesmo a produção vitícola um sector que, apesar de estar a registar uma requalificação técnica através de maior acompanhamento, formação e incentivos, ainda se caracteriza por um perfil de cariz doméstico. Cerca de 98 por cento dos que trabalham na área são pequenos produtores, muito dependentes de ajuda oficial.

Atualmente, para além do subsídio à produção, é atribuída uma compensação de 500 euros aos produtores com área de exploração a partir dos 500 metros quadrados, valor que duplica em caso de a referida área ser superior a 5 mil metros quadrados. Para a maioria dos pequenos produtores este será o principal incentivo que os liga à terra. “Se um dia deixar de haver a compensação do governo, perde-se esta atividade”, sustenta Rui Pita, ele próprio ligado à atividade mais por tradição do que pelo lucro. “Há muita gente a ganhar com o Vinho Madeira, mas não são os agricultores. Paga-se um euro por cada quilo de uva, o mesmo de há vinte anos, mas o preço de cada litro de vinho é bem mais caro. Há um grande desfasamento. Penso que se o preço ao consumidor fosse mais baixo havia mais procura até pelos madeirenses”.

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Agostinho Henriques é produtor há mais de duas décadas. Tem negra mole e uns pés de “francesa” e “pretinha”. Mais por paixão do que por dinheiro.

Qualidade garante escoamento

Também Agostinho Henriques é dos que nasceram com as parreiras à porta, a ver o pai no labor constante da poda, da aplicação dos produtos fitofarmacêuticos, do esfolhar, da vindima e do lagar. Um ciclo que se repete ano após ano. “Não se pode tirar férias. É preciso cuidar delas todos os dias, olhar pela água de giro que vem da Levada do Norte, com dias e horas marcados. Depois, em janeiro, começa a dar mais trabalho. Temos de podar, amarrar e de duas em duas semanas deitar os remédios. E não pode falhar”.

Hoje, o grau de exigência pela qualidade do produto é maior. A responsabilidade por oferecer um bom produto aumentou, mas Agostinho gosta que assim seja, porque garante total escoamento do seu produto e um rendimento certo ao final do ano. Com efeito, as entidades oficiais já garantiram a compra de toda a uva excedente desde que cumpra os parâmetros de qualidade exigidos. O que tem vindo a acontecer nos últimos anos, com os produtores a apostarem na requalificação das castas e da sua formação técnica. Atualmente, a maioria aposta na casta tinta negra mole, embora ainda subsistam para consumo doméstico castas tradicionais como o americano e a francesa.

“Americano com francesa já ferve”

Neste particular, Sara Freitas tem o que dizer. Tal como a D. Maria, da Fajã das Galinhas, que entretanto se juntou ao grupo, garante que não há vinho igual como o do Estreito de Câmara de Lobos. Ou não fora este o principal centro produtor desde os tempos da colonização.

Nos seus terreiros, como em qualquer casa da zona, há cepas muitos antigas. “São mais velhas que eu”, remata D. Maria do alto dos seus 70 anos. “Tenho aquilo para lá só para entreter”.

A conterrânea concorda e mostra que vai mais avançada. “Olhe, eu cá já apanhei. O americano com a francesa já está a ferver. No Natal, está clarinho”. No Estreito, é assim que se fala de uvas e vinho a fermentar.

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Os produtores têm estado mais atentos à qualidade da uva o que tem permitido escoar quase toda a produção.

Vindimas prometem bom resultado

Entretanto, Gabriel Pereira vai trocando conversa com vários munícipes, ouvindo queixas e pedidos. É o contacto pessoal, de primeira linha, que carateriza o papel de autarca, sublinha de forma gentil e pausada. “Temos de estar disponíveis para ouvi-los em qualquer lugar ou altura. Até durante as Missas do Parto”. Sorri.

Daí que conheça de perto a realidade dos mais de 660 produtores de uva que laboram no concelho. Representam metade do total dos produtores em toda a Região. A importância de Câmara de Lobos na produção vitícola é também significativa em termos de área. Do total dos 400 ha existentes na Madeira, só o concelho detém uma área de 125 ha, seguindo-se São Vicente com 122 e Santana com 82 ha.

Relativamente à produção de uva, a situação este ano está a evoluir de forma favorável e afiguram-se bons resultados. A época oficial de vindima começou a 1 de setembro, mas para a maioria das produções ainda não chegou à altura certa da apanha. Se o tempo se mantiver, sem chuva, mais uma semana e as uvas ganham o grau de maturação desejado e necessário para poderem ser vendidas às empresas e ao Instituto do Vinho.

Recorde-se que o concelho de Câmara de Lobos é responsável por 51 por cento do total das vindimas realizadas na Região, processo que em 2014 atingiu as 4.218 toneladas de uva.