Uma fotografia perturbante foi publicada, retratando um episódio em Moses Lake no Estado de Washington. Uma escavadora desmantela impiedosamente a cauda de um Mitsubishi SpaceJet. O Samurai dos ares recebe a espada no ventre de alumínio, sem glória.

É o fim deste Aero-Shogunato da Ásia, deixando a vizinha China como o único construtor de aeronaves comerciais naquele continente. O programa do SpaceJet tinha já sido cancelado em 2020, após anos de mofo, e os funcionários quase todos despedidos nos meses seguintes. É o segundo airframe a conhecer a fria espada, na realidade, na mesma localização onde esteve a fazer testes, porque o espaço aéreo japonês é denso demais para permitir milhares de horas de voo experimentais. O Concorde também fez parte dos testes ali, tanto que o G-AXDN em Duxford ostenta pintura com motivo alusivo (“Miss Moses Lake”).
O programa começou em 2007. Na altura foi anunciado o Mitsubishi Regional Jet (MRJ), aposta em altura propícia da Mitsubishi Heavy Industries (MHI). Os jatos regionais tinham tomado preponderância no final dos 90 e início do milénio, desenvolvendo imensas rotas que antes eram operadas com mais lentos turboprops. O Embraer 145 foi um sucesso, tal como o Bombardier CRJ, criado a partir do bizjet Challenger. Com o ocaso do Fokker 70/100 e dos Avro RJ havia espaço para começar encostar a capacidade ao Airbus A319 e B737-700, rapidamente acompanhados dos bebés A318 e B737-600 como contra ataque dos grandalhões. A Embraer já tinha dado um passo firme com a série E170/195, com motores em configuração debaixo da asa, e conseguia oferecer 120 lugares. Os A318 e B737-600, destinados a serem a firewall de segmento de mercado médio pouco convenceram mesmo os parcos clientes. O MD90 e sucessor B717 não geravam tração e não se lhes avizinhava futuro.
O MRJ passou do papel em 2007 e ambicionava os 90 lugares. No ano seguinte a Bombardier, após anos e anos a rabiscar conceitos como o BRJ-X e a fazer cautelosas contas no excel, lança o programa CSeries, desenho cleansheet.
O primeiro MRJ começou a ser montado em 2011, com entrega prevista para 2017. A nova fábrica fica no aeroporto de Komaki, em Nagoya onde foi desenvolvido o famoso Mitsubishi A6M “Zero”. Era a reentrada fulgurante dos japoneses na aviação comercial, após quatro décadas de interregno desde o turboprop NAMC YS-11.

Teve vários clientes nacionais e internacionais, embora não trouxesse benefício financeiro equivalente.
Após anos de vários atrasos sucessivos para redesenho, o MRJ 90 fez-se aos ares pela primeira vez a 11 de novembro de 2015. É aí que começam os problemas a sério. O programa de testes alonga-se e em 2017 anuncia a MHI que a primeira entrega será a meio de 2020, com imensos problemas de engenharia e custos a escalar de maneira alarmante. Nesta altura o Bombardier CSeries operava comercialmente e a Embraer também já tinha entregue os modernos E2.
Em junho de 2019 a Mitsubishi mudou a marca MRJ para SpaceJet. Na minha perspetiva sem qualquer sentido, porque não era supersónico nem voava mais alto que os outros competidores. O mundo não parava e o CSeries já voava como Airbus 220, e a Boeing tinha firmado acordo de fusão com a Embraer. No mesmo mês, a Bombardier vendeu à Mitsubishi o programa CRJ por 550 milhões de dólares, deixando o – rentável – bizjet Challenger em posse dos canadianos. O objetivo era ter capacidade de manutenção, suporte de vendas no imediato.
A situação enegrecia-se porque a Bombardier tinha desistido do segmento por motivos financeiros, e Mitsubishi afundava ienes num programa em que sabia que nunca mais iria recuperar o investimento, mesmo cumprindo o plano de vendas. Logo no ano a seguir a Mitsubishi reduziu o orçamento para metade e suspendeu o desenvolvimento da versão 100, citando a quebra no mercado devido à COVID19.
Em 2021 a Mitsubishi Heavy Industries cancelou integralmente o Spacejet e confirmou estar a planear a liquidação da Mitsubishi Aircraft Corporation. No momento do cancelamento tinha 207 encomendas e 170 opções. Chegou a haver uma unidade com cores do futuro cliente ANA mas nunca foi certificado nem operado por companhia alguma.

O que vão fazer com o programa CRJ em estado paliativo é uma incógnita. Resta à Mitsubishi Heavy Industries continuar com os contratos com a Boeing, para a qual produz partes do B787 e B777. O Hondajet é um Very Light Jet de sucesso.
O que realmente é penoso ver é a falta de intenção em preservar estes SpaceJets em museus. Esperemos que pelo menos os que estão no Japão o sejam e que algum acabe num museu de excelência, Le Bourget, Smithsonian, Sinsheim, etc.
De modo algum faço aqui juízo negativo da MHI:
- A janela de mercado existia quando lançaram o programa;
- A compra do programa CRJ fazia sentido, era arriscado lançar um avião sem suporte. Talvez tardio, mas não estaria à venda antes. O Sukhoi SuperJet é um bom exemplo de como uma aeronave tecnicamente sólida pode ser um pesadelo;
- Os desafios de engenharia foram sendo ultrapassados, com a humildade de se procederem às alterações em vez de optar pelo cego passo em frente;
- A decisão de assumir a perda e cauterizar a ferida sem medo político é o que distingue os vencedores dos perdedores;
- Outros mais competentes tiveram dificuldades: o CSeries quase falia a Bombardier, e o incumprimento da legislação laboral americana dos pilotos também não é cumprida pela Embraer com a geração E2 do E170, que ainda vende a versão arcaica. Senão não vendia, também;
- De certeza que muito conhecimento se gerou no japão, útil noutros programas.