Tema das JMJ 2023: “Maria levantou-se e partiu apressadamente” (Lucas 1, 39)
- O que são as Jornadas mundiais da Juventude?
Trata-se de uma celebração instituída pelo Papa João Paulo II, em 1985, no sentido de aproximar a Igreja e os jovens. Constituíram-se, desde então, e por vontade expressa do Papa, uma “festa da fé” durante a qual, jovens provindos de todas partes do mundo partilham a “experiência universal do Amor de Deus”. Por essa razão, se designam como jovens peregrinos, preferencialmente acolhidos em casa de famílias cristãs que, dessa forma, colaboram na partilha e passagem de testemunho de vivências cristãs, enfim, de evangelização aos diversos visitantes.
Estes encontros, que os Papas seguintes continuaram a acolher, ocorrem numa grande capital sendo que o último, em 2019, aconteceu no Panamá, na cidade com o mesmo nome. Assim, após o adiamento relativo à pandemia, Lisboa acolherá, em Agosto, as Jornadas deste ano.
- Uma congregação de vontades
A realização deste tipo de eventos resulta, como qualquer outro acontecimento, no quadro de um estado laico, de um conjunto de vontades e da sua concertação. Em Portugal, aquando do anúncio da sua realização, em Lisboa, foi lançado um vídeo que reuniu depoimentos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa que proferiu uma mensagem de boas-vindas aos jovens de todo o mundo; do Primeiro-Ministro, António Costa que aludiu ao facto de Portugal “há séculos construir pontes de amizade entre povos e culturas”; do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (actual Ministro das Finanças), Fernando Medina que caracterizou Lisboa como uma “cidade alegre e vibrante”, assim como do Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente que sublinhou a dimensão da “paz e da esperança”. Recorde-se que Fernando Medina se deslocou ao Panamá para, formalmente, aceitar essa designação.
Independentemente de ser uma organização religiosa, o lugar que a acolhe representa, nessa semana, os ideais de paz, de liberdade e de fraternidade, tornando-se parte da mensagem de esperança num mundo melhor, o melhor legado que os jovens podem receber. Nesse sentido é, igualmente, como se depreende, um evento cívico-político com profunda notoriedade e que suscita um expectável retorno financeiro.
- Das contas mal contadas
Para que tal aconteça, são necessários investimentos cuja cifra se reparte pelos diferentes intervenientes, após ser definido que se pretende. Todos os países e todas as cidades visam celebrar esta festa com brio e com esplendor. Ao anúncio, feito em Janeiro de 2019, ano em que não consta o registo de qualquer iniciativa nesse sentido, sucedeu um importante entrave, em 2020, ano de fechamento total, de perda de referências e até de esperança em novas realizações. Compreensivelmente, tudo pareceu ficar “parado”. Mas, em 2021, terminada a pandemia, deveriam ter sido iniciadas diligências, repensadas algumas decisões e até, talvez, alterados alguns caminhos definidos. A preocupante inércia e a perspectiva de um desaire levaram a que, em 2022, seja inscrita – no Orçamento Geral do Estado (e duplicada no orçamento de 2023) – uma medida que autoriza o ajuste directo na adjudicação de bens e serviços para as despesas que os municípios terão e que os empréstimos para as mesmas não serão tidos em conta como dívida para os municípios (cláusula acrescentada, no OGE de 2023). Entretanto, José Sá Fernandes, nomeado Coordenador deste processo, e segundo o que foi anunciado, estará a auferir um salário entendido como desmesurado para o efeito, no quadro de um contrato que se prolonga até 2024, um ano após a realização das Jornadas. Tudo isto, além de dispor de uma equipa de oito pessoas e de motorista particular para o efeito. Tudo isto acontece num quadro em que, dada a premência do início das obras, como sabemos, os custos aumentam exponencialmente. Começa agora a colocar-se a questão do escrutínio relativo, não só à excepcionalidade das medidas que isentam a aplicação da Lei quando esta deveria ser exemplar, como ainda à percepção crescente do exagero desnecessário.
Não queremos, aqui, escamotear o facto de que estes eventos podem ser profundamente transformadores e com impactos muito positivos nos espaços e nos tempos em que ocorrem e que o designado “retorno financeiro” é de difícil aferição. Há muitas dimensões, aliás, que o ultrapassam e ainda bem.
- Um palco com algumas “desafinações”
A notícia relativa aos custos de um dos palcos previstos causou uma tremenda agitação social e mediática. Contrariamente a certas “teses” segundo as quais o povo português sofreria de um qualquer défice que o leva a indignar-se com a parte e não o todo, comungo da opinião relativa ao excessivo custo do referido palco. Podemos, como parece ser óbvio, concordar com um determinado investimento feito, relativamente a um certo fim, entendendo que o custo desmesurado de um dos seus componentes possa ser criticado e denunciado como tal.
Quanto às outras “desafinações”, refira-se aquelas pessoas que se apressam a vociferar que o Estado é laico e que se fosse o Dalai Lama e mais etc. que houvesse, isso não se faria. Enfim, essas menoridades intelectuais servem apenas para distrair “tweets”, mas não cabem no quadro de um Estado livre, independente e democrático.
Quem esteve, igualmente, “fora de tom” foi o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa que, no âmbito da teoria, muito em voga entre políticos, de “ou isto ou o caos”, perdeu uma excelente oportunidade para ser agir de forma diferente dos demais.
Várias pessoas entendidas nas matérias envolvidas puderam manifestar-se, concluindo que a referida infraestrutura é chocantemente cara e totalmente desnecessária, naquela ordem de custos.
- Mas o que é que a democracia tem a ver com isto?
Tudo. Num Estado “adulto”, isto é, responsável perante os cidadãos e pela prestação de contas acerca do modo como gasta o que estes pagam em impostos, a transparência seria um valor fundamental. Assim, teria sido logo anunciada a previsão dos valores dos investimentos, assim como a sua repartição entre as diferentes entidades envolvidas. Teria sido, ainda, estimado um retorno financeiro em função do que é possível contabilizar. Este é o panorama que resulta do funcionamento de uma democracia plena onde as contas públicas são escrutináveis porque transparentes.
A imagem da Igreja também resulta “beliscada” deste episódio. Tentarei abordar como.
- Dos valores cristãos, hoje, ano 2023
O ano de 2023 iniciou-se, no âmbito da Igreja Católica com a sentida morte do Papa Emérito Bento XVI. É verosímil que, nesses dias, o Papa Francisco tenha reflectido, de forma mais profunda, numa sua possível abdicação. Ou que tenha, em função de muitos acontecimentos, desistido, para já, dessa decisão que, em minha opinião, teria sido acertada.
Mas não foi esse o seu entendimento. Desse modo, em 2023, cumprem-se 10 anos do seu pontificado. Em breve, deslocar-se-á a África (República Democrática do Congo e Sudão do Sul), celebrará o milénio da Abadia de Saint-Michel (em França), presidirá a uma nova fase do Sínodo sobre o futuro da Igreja (Assembleia sinodal sobre a Europa, em Praga), prosseguirá a sua denodada luta contra os abusos, na Igreja e será o mais jovem dos jovens, nas Jornadas em Lisboa. A par desta agenda, a gestão dos (cada vez mais frequentes) ataques às Igrejas e às comunidades católicas, um pouco por todo o mundo. A incerteza quanto ao desenrolar da guerra perpetrada pela Federação Russa, na Ucrânia, constitui, ainda, uma das preocupações do Papa.
Em Lisboa, será confrontado com a mais abjecta necrose da Igreja, a pedofilia, patologia na qual urge a aplicação de medidas mais incisivas, exemplares e céleres. Espera-o um ano pleno de desafios e de tomadas permanentes de decisão que assentam na radicalidade da mensagem de Cristo, à qual regresso, para recentrar a questão dos custos com as Jornadas, em Lisboa.
Ao longo do seu pontificado, o Papa Francisco tem sido muito claro quanto aos seus propósitos e aos temas que elegeu no sentido de nortear a sua missão: a) uma “ecologia integral”; b) uma preocupação actuante, no quadro do que se entende como “periferias”, quer as geográficas, quer as sociais e culturais; c) o diálogo inter-religioso e d) a prossecução, partilhada, de caminhos para a Paz.
Assim, tem sido notória a sua preocupação no sentido da eliminação de toda a superficialidade e do acessório, em benefício do essencial da mensagem de Cristo. Então, em 2020, por exemplo, o Papa exortava os jovens a desistir do “narcisismo digital” e de “se tornarem mais próximos dos que sofrem”. Num tempo pós-pandémico, durante o qual os jovens foram tão penalizados, no quadro actual da construção de um novo modelo de globalização e de governança mundial, ditado pela forma como a guerra, na Ucrânia, terminar, torna-se urgente a colocação de novos pilares no edifício da fé cristã.
As JMJ 23 ocorrem num país onde há paz, liberdade e onde é possível aos jovens (e não só) exprimirem-se com liberdade. Acontecem num país onde todos podem manifestar as suas crenças, opções, idiossincrasias sem por isso serem penalizados. Esta mais-valia não pode ser camuflada por excessos materiais que o Papa condena e que contrariam, em todas as dimensões, os valores cristãos. Que as jornadas sejam verdadeira peregrinação: alegria na partilha, convívio e renovação da fé cristã. Que sejam a certeza da vivência desses valores para além das mesmas. Nada disso exige o desmesurado luxo de cinco milhões. Poder-se-ia, inclusive, sugerir que – estando esse dinheiro disponível e tendo optado por uma solução mais acessível – porque não doar para as causas mais urgentes? Não podemos estar eternamente a recordar a manjedoura para, em tempos de provação, celebrar o seu contrário.
Num texto publicado no site das Jornadas, D. Manuel Clemente evoca os treze santos patronos das mesmas que, segundo o Patriarca “demonstraram que a vida de Cristo preenche e salva a juventude de sempre”. A principal é a Virgem Maria, invocada sob a designação de Nossa Senhora da Visitação. Depois, São João Paulo II a quem as Jornadas devem a sua existência e, também, São João Bosco, declarado “Pai e Mestre da juventude”. São Vicente, padroeiro da diocese de Lisboa, é também patrono. Com justiça, Santo António de (Lisboa e) Pádua, designado pelo Papa Leão XIII como “Santo do mundo inteiro” e, ainda, São Bartolomeu dos Mártires e São João de Brito, também de Lisboa, são outros dos patronos.
Todos, são exemplo de frugalidade e dádiva, que podem instituir novos modos de ser cristão. Que a Igreja não se deixe iludir pelos novos “vendilhões do templo” e, na certeza dos sacrifícios exigidos a tantos, possa – sem descurar o brio e a cerimónia – ser parcimoniosa nas suas escolhas.
Que memórias levarão os jovens que participarão? Que saberes terão acumulado e que novas competências terão desenvolvido? “É urgente o Amor” (Eugénio de Andrade) e esse não carece de palcos de cinco milhões.
Termino, citando Tolentino: “A melhor herança que deixaremos uns aos outros é o amanhecer”. Que os peregrinos vivam, em Lisboa, nas JMJ23, momentos de serendipidade e que sejam belos os “amanheceres”.
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Referências:
- Sic-Notícias “Linhas Vermelhas”
- Site das Jornadas Lisboa 2023