Uma inevitabilidade?

Há precisamente 20 anos, em 2002, nas eleições presidenciais francesas, sucedeu o, até então, inimaginável.

Jean- Marie Le Pen, um candidato assumidamente xenófobo e racista, conseguiu votos suficientes para poder disputar a 2ª volta das eleições presidenciais em França – pelo caminho ficaria o então primeiro-ministro Leonel Jospin do PSF. O choque foi de tal dimensão que, nessa 2ª volta, ocorreu uma mobilização geral à direita e à esquerda que levou a que o presidente recandidato, Jacques Chirac vencesse as eleições com uns impressionantes 82%, tendo na altura se recusado a debater com Jean-Marie por se opor “à banalização da intolerância e do ódio”.

Cinco anos volvidos, o presidente eleito, Nicolas Sarkozy, oriundo da mesma família política de direita de Chirac, contribuiu decisivamente para a chamada “normalização” do partido de Le  Pen, a Frente Nacional, ao declarar que o voto em Le Pen  era compatível com a República.

A Jean-Marie sucedeu a filha, Marine, que em 2012, na sua estreia nas presidenciais não passou dos 18%, mas mesmo assim conseguiu superar as votações do pai, em percentagem como em número de votos.

Marine Le Pen afastou-se posteriormente do pai, mudou o nome do partido para União Nacional e apagou do seu discurso político os aspectos mais extremistas, tendo em 2014, nas eleições para o Parlamento Europeu, o seu partido ficado em 1º lugar, com 25%, seguido dos conservadores da União para um Movimento Popular com 20% (nas anteriores eleições para o PE, o partido de Le Pen obtivera apenas 6% e em 2019 voltou a vencer com 23%).

Nas mais recentes eleições presidenciais francesas, em Abril passado, Macron seria reeleito com 58,55% dos votos (em 2017 ganhara com 66,10% do total dos votos), enquanto Marine obtinha 41,45%, um valor histórico em eleições presidenciais – cinco anos antes tinha conseguido 34%, ou seja ganhou n2,5 milhões de votos relativamente às presidenciais de 2017.

Como é sabido, estes resultados foram recebidos com alívio nas diferentes capitais europeias, mas, como escreveu no jornal “Público” de 24 de Abril p.p., Sandra Fernandes do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho “Macron venceu mas Le Pen não perdeu”, uma vez que, na sua opinião, “esta eleição poderia ter sido vencida por Le Pen, que angariou votos na população jovem, disputou mais votos a Macron nas idades mais adultas e tem uma implantação regional que foi enraizando desde que lidera o partido, em 2011”.

Há, com efeito, em França uma visível fractura geracional, social e geográfica. Macron teve um score impressionante junto dos reformados e da população acima dos 65 anos, enquanto a França rural e esquecida, profundamente conservadora e eurocéptica, votou maciçamente em Le Pen. E com a pulverização dos partidos tradicionais à direita e à esquerda, a França está politicamente dividida em três blocos: o que se concentra em torno de Macron, o que gira em redor de Marine e o que é liderado por Mélenchon. Uma divisão que voltará a emergir nas eleições legislativas do próximo mês de Junho.

Também a 24 de Abril último, no editorial que assinou no “Público” que dirige, Manuel Carvalho, o seu director, sob o título “A democracia europeia numa luta contra o tempo” reconhecia, comentando as referidas eleições, que “a extrema-direita está a ganhar fôlego e a democracia está a perder força”, uma vez que “há nestas eleições uma insuperável sensação de que a França democrática e republicana, a Europa e os adeptos da democracia conquistaram apenas tempo na longa e dura luta contra o extremismo populista”. E acrescentava: “Na Hungria, na Polónia, na Holanda, na Espanha ou, mais recentemente, em Portugal é impossível não admitir a ideia de que, sim, a prazo a Europa pode cair nas mãos dos que a odeiam e querem destruir os seus fundamentos humanistas e civilizacionais”.

Ainda no mesmo jornal e na mesma data, Teresa de Sousa realçava um outro facto: “a principal lição que talvez possamos tirar destas eleições é a sua similitude com o que estamos a ver há já bastante tempo nos Estados Unidos, com as consequências profundamente negativas que conhecemos – a criação de dois «países» distintos que progressivamente deixam de ter pontes entre si”.

Isso mesmo transparece de sondagens efectuadas à saída das urnas que mostraram que os votantes de Macron são citadinos, escolarizados, têm uma maior esperança média de vida e maiores rendimentos; enquanto os eleitores de Marine são menos escolarizados, são mais pessimistas perante a vida, provêm das comunidades com maior desemprego e mais pobres.

Neste quadro, e perante o risco do populismo extremista que é impossível ignorar ou menosprezar, é inevitável questionar: será uma questão de tempo, de anos, para que em França possa suceder a vitória de uma candidata da extrema-direita nas eleições presidenciais? Só o futuro o dirá. Do que não restam dúvidas é que a ocorrer, legitimaria e galvanizaria a direita populista por toda a Europa.

Uma nota final para recordar que em Fevereiro de 2021, a revista The Economist revelou um estudo que evidenciava que apenas 49,4% da população mundial vivia em democracia e só 8,4% desse universo experimentava a democracia plena. Por outro lado, mais de 1/3 da população mundial vivia num regime autoritário, com a população residente na China a representar uma fatia importante.

 

                  * por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum: 1) “Metáfora”/Chantagem: Na peugada da criatura que se autointitulou “único importante” cá do burgo, o seu substituto na Quinta questionou se vale a pena a Madeira continuar integrada na República, tendo de seguida acrescentado que se tratava de “uma metáfora”. Aproveitando a boleia, um “cubano” (certamente com a Madeira no coração), fez saber que se não houver mais dinheiro há que referendar a pertença a Portugal. Andamos há 48 anos a assistir a isto. À ameaça com o separatismo. Que diabo, tenham a coragem e avancem para o grito de Ipiranga. Recorram, como dizia o outro, às Nações Unidas. Chega de chantagem!

2) Troca-tintas:  o inquilino da Rua do Quebra-Costas fez saber que vai apoiar o tal candidato à liderança do seu partido que outrora era catalogado de agente da perigosa maçonaria. Surpreendente? Para quem nunca se pautou por princípios ou valores tudo é permitido. O que hoje é verdade, amanhã é mentira!

3) Roda Livre: a gestão da segurança social na Região continua a primar pelo brilhantismo. Uma hora deixa prescrever dívidas aos empresários amigos. Na outra, o Tribunal de Contas chumba-lhes as contas e aponta para a concessão de subsídios sem controle. É o resultado do ADN da dívida “oculta”. Quem sai aos seus não degenera!

4) Insaciável: o todo poderoso lobby da construção civil continua a dar cartas e a intensificar o esburacar da ilha. Agora estuda-se uma nova ligação a S. Vicente, a partir da Serra d’Água e outra entre Boaventura e o Curral das Freiras. Viva o “pugresso”!