As profecias de Jerónimo Bosch

Que inferno é este? Pergunta-se. Que flagelo insuspeitável nos atinge e nos obriga a questionar sobre os poderes apregoados dos salvadores do mundo? Que povo é este dividido, arrastado para um confronto nunca visto, entre perversidade e magnanimidade, loucura e sensatez, onde a primeiras  adquirem messes e adeptos, ganham as alas dos ignorantes e predadores; e as segundas são relegadas para a expiação, o sacrifício, a tortura, como se fossem estas as culpadas por um estado do mundo que afinal depende de todos, repito, de todos, e exige a responsabilidade de evitar e combater !?

Mais do que nunca, temos assistido, nos tempos recentes, à confirmação de terríveis «profecias», exaradas ao longo da História, provenientes das áreas mais diversas do conhecimento, onde a Ciência, a Filosofia, a Teologia, se manifestam, num alerta constante sobre desequilíbrios, fragilidades, e atentados à ordem da vida. A palavra pecado, que é afinal uma prevaricação, foi desactivada ao longo do tempo e deixou de ter validade perante a liberdade desenfreada com que a humanidade achou ter conquistado o pico privilegiado da civilização: Viver as ambições e desejos pessoais sem ponderação, nem freio, sem respeito, nem complacência para com as regras da vida. Contudo, a vida tem regras, aquelas que a Natureza e a necessidade de coabitação  prescrevem.

Neste momento da história humana, vive-se uma experiência de proximidade com uma espécie de inferno. A pandemia veio trazê-lo à nossa porta e ninguém sabe ainda que dimensões atingirá. As imagens que nos é possível observar, as notícias que nos trazem o colapso dos países, invadidos aleatoriamente pela morte dos seus habitantes e a impotência dos meios de auxílio às multidões atingidas, leva-nos a reconsiderar que relação terá  o mundo da prevaricação com o mundo das delícias, tanto apregoadas pelos inadvertidos salvadores do mundo ?

Jardim das Delícias de Bosch.

Um estranho jardim de terríveis «delícias» traz-nos da Idade Média as profecias dum pintor, ao tempo, marginal, e oferece-se actualmente, de modo especial e oportuno, à auscultação dos estudiosos. Uma tela de 1,95 por 2,02 metros, de Jerónimo Bosch, torna-se alegoria dos males que alastraram pela terra e causaram aos humanos os maiores sofrimentos. «O Jardim das Delícias» é a representação da depravação humana, através de pavorosos símbolos e considera os pecados capitais na sua expressão mais devastadora. A origem destes pecados, antes de serem veiculados pelo cristianismo, remete-os para tradições e rituais egípcios e babilónicos. Fazem parte da natureza humana, observados sob um conceito de normalidade, mas tornam-se  maléficos  se levados ao extremo e a práticas  viciadas. Citando-os em lista de confrontos, podemos alvitrar que o  normal apetite pode conduzir à gula; o espírito de poupança pode transformar-se em avareza; a sensualidade em luxúria; a legítima ambição, quando desenfreada pode originar a inveja e a corrupção;  o brio e a diligência podem gerar a vaidade e a soberba; o despojamento pode levar à  ociosidade, conducente ao roubo e ao homicídio.

A monstruosidade é a tónica desse «Jardim das Delícias», identifica-se com actos e instrumentos de tortura, numa alusão evidente a um tempo medieval, a época em que viveu o pintor, mas  projecta-se ironicamente na realidade dos nossos dias, com seu timbre premonitório e crucial de profecia.

A tela de Jerónimo Bosch é um documento atemporal e constitui simultaneamente uma crítica e um alerta. Salientam-se no tempo presente os comportamentos de alguns humanos empenhados em lutas desbragadas pela defesa de egoísmos e ambições, enquanto outra parte da humanidade sofre terrivelmente nos hospitais, nos confinamentos, na solidão, sujeitos às mais variadas privações, incluindo as da fome e a mais simples liberdade de conceder o toque presencial de um abraço.

Quem se arroga a salvador do mundo, não pode promover conflitos, nem descurar  virtudes que se opõem aos indesejáveis vícios capitais. Humildade, generosidade e tolerância, solidariedade, compaixão, verticalidade, brio e honradez, são bases morais que constroem os alicerces para um desejável comportamento cívico, seja qual for o tempo das civilizações.

Dias negros são estes que vivemos. Ninguém é mais poderoso que ninguém. Humildes e solidários, perante o sofrimento e a morte, teremos que ser, em  apelo de consciência dos que sabem que as regras da vida são um bem imponderável e as regras da morte não podem, não devem, nunca, ser desafiadas.