Recordar, com Galeano

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Pai, ensina-me a olhar!”

Eduardo GALEANO, in O livro dos abraços

– Tradução de Eric Nepomuceno. (9ª. ed. Porto Alegre: L&PM, 2002)

 

(Estava um dia chuvoso, em Santana. Brumas intermitentes, jardins que se ocultam e silenciam os perfis abruptos das montanhas que caem sobre o mar sem qualquer pudor. Há uma memória telúrica que este cenário, simultaneamente fragmentado e uno, entrecortado pela palavra que o enuncia, tão frequentemente evoca. Ali, sou e sinto-me livre. Sinto, como verdadeira, a existência de uma hereditariedade epigenética transgeracional que valida essa forma de memória que se transmite de geração em geração e que me impele/desafia ao exercício permanente de defesa da Liberdade).

Dois mil e vinte terá produzido, para a História, um conjunto de fontes que, até agora, nenhum outro ano terá originado. O temor, a todos os níveis, provocado pela pandemia, é um quadro infelizmente comum a muitas outras épocas da História, sendo que esta é a primeira catástrofe, desta natureza, em tempos de globalização.

No editorial de um recente número da revista Sciences Humaines, Héloïse Lhérét elenca um conjunto de acontecimentos que provocaram a mudança da “paisagem intelectual do mundo”, nos últimos trinta anos, assim contribuindo para as mudanças perturbadoras do “nosso universo político e mental” e cito: o desmoronamento da URSS (1989) e dos regimes comunistas europeus, a primeira guerra do Golfo (1991), a Cimeira da Terra, no Rio (1992), o Tratado de Maastricht (1992), o Genocídio, no Ruanda (1994), os atendados, nos Estados Unidos (2001), a adesão da China à OMC (Organização Mundial do Comércio, 2001), a emergência do Brasil e da Índia, a crise financeira (2008), a eleição de Barack Obama (2009), as Revoluções Árabes (2011), o terrorismo jihadista e a eleição de Donald Trump (2017), temas aos quais poderíamos, agora, acrescentar o seu duplo (primeiro na História dos EUA) processo de impeachment decorrente do incitamento (sem precedentes, em Democracia) à violência como instrumento de tomada de poder.

A sequência de eventos apresentada pela articulista revela, sumariamente, o devir paradoxal do mundo, aliás como ela refere quando afirma que “a atracção mundial pelo modelo democrático, a par das reivindicações pela liberdade e igualdade” não deixou de coexistir com o afundamento de algumas democracias, tendo algumas desaparecido totalmente, sendo que outras se transformaram nessa espécie (cada vez mais frequente) de “democratura”, um regime híbrido, conjugação de democracia e de ditadura, que parece definir, não sem preocupação e até desalento, o estado das Democracias, mesmo as consideradas mais “sólidas”, a nível mundial.  A “Intelligence unit” do The Economist, no seu último relatório anual acerca do estado da/s democracia/s e que se reporta a 2019, logo ainda não considerando os dados do “ano pandémico” refere que, do total mundial, apenas 5.7% da população aufere de regimes políticos considerados “democracias plenas”. No seu editorial, Joan Hoey, afirma que “a marcha global da democracia estagnou nos anos 2000 e retrocedeu na segunda década do século XXI”. No entanto, para Hoey, “a onda de protestos no mundo em desenvolvimento e a insurgência populista nas democracias maduras mostram o potencial de renovação democrática.” Apesar disso, como mencionei, nenhuma da informação citada se reporta ao estado da arte em plena crise pandémica, sendo que o mesmo poderá reflectir, de forma ainda mais aguda, aquilo a que Lhérét designa como “descarilhamento do combóio da História”. Temo, por tudo isto, que os próximos resultados se revelem ainda mais desalentadores e preocupantes. O The Economist contempla, no relatório citado, um conjunto de sinais reveladores da estagnação e/ou regressão da democracia ao longo dos últimos anos e cito:

  • Uma crescente ênfase na elite governativa mais do que na participação democrática popular;
  • Uma crescente influência dos não eleitos, das instituições que não prestam contas e das corporações;
  • A eliminação da arena política de questões substantivas de relevância nacional no sentido de serem decididas por institutos supranacionais, à porta fechada;
  • Um crescente afastamento entre as elites / partidos políticos e os eleitorados nacionais e
  • O declínio das liberdades civis, incluindo a liberdade de informação e de expressão.

Portugal, nesse índice, encontra-se em último lugar na categoria de “democracias plenas”), a uma distância mínima do primeiro país da lista das democracias “imperfeitas”, a Coreia do Sul. As taxas de abstenção registadas em Portugal, sem que uma efectiva acção do Estado vise contrariar esse facto, constitui igualmente um sinal de fragilidade da Democracia e das suas principais instituições.

O ano que agora terminou balizará, no quadro das flutuações geopolíticas, um (ainda) maior declínio dos poderes democráticos, fazendo depender de decisões longínquas dos cidadãos o modo como as sociedades estarão organizadas. Globalmente, serão tecidos elogios à Ciência, pelo facto de ter sido encontrada (em tempo “recorde”) uma vacina capaz de poder vir a erradicar um vírus mortífero que terá dizimado uma significativa parte da população, em especial a mais idosa. As sociedades ditas ocidentais, crescentemente egoístico-consumistas, que tendem a considerar as gerações mais velhas como um estorvo, fazem-no a par de uma tendência crescente: a da eliminação dos veículos de preservação da memória e da transmissão dos valores/pilares fundadores dessas mesmas sociedades, defensoras dos Direitos Humanos (apesar de todas as polémicas) e das liberdades individuais.  À vitória da Ciência tem correspondido um ocaso imposto à Cultura, enquanto tempo e espaço de promoção de questionamentos, de reflexão sobre o mundo, de usufruto estético e ético do mundo. O “fechamento” da Cultura (generalizado, na Europa, aliás) a que se segue uma “abertura” de privilégio aos porta-vozes, quais ecos, dos regimes políticos (sem que isso aloje uma sublevação/indignação do restante tecido cultural) é um dos mais significativos indícios do apoucamento da Democracia e da Liberdade que lhe corresponde. As televisões, órgãos líderes de comunicação, promovem uma progressiva iliteracia ou o contentamento relativo ao status quo, exibindo “vazios” em horário nobre, preenchendo os supostos tempos de análise e de reflexão, com alguma informação à qual não corresponde conhecimento. São ecolálias, redundâncias, tautologias, uma sinonímia da destituição do pensamento reflexivo, da análise crítica, de algum contributo (por mínimo que fosse) no sentido de abalar (no melhor sentido possível) as consciências. Adormece-se, entorpecendo, a capacidade de reacção, de exigência de governos melhores, de um mundo melhor.

Entretanto, teias de corrupção desfilam “diante dos nossos olhos”, todos os dias. Em nome do Estado, assassinatos, perseguições ilegais, ausência de protecção aos mais desprotegidos, roubos, falhas na segurança nas forças armadas, um sistema de saúde a desmoronar, mais de uma centena (as que ficaram registadas em contexto do sistema de saúde) de crianças/jovens que sofreram, em Portugal, o crime horrendo da mutilação genital feminina e o país assiste, num silêncio cruel, ao trauma horrendo deste/s delito/s. As vítimas da mutilação genital feminina não têm voz que as defenda, que exija que – num Estado de Direito democrático – essas práticas bárbaras sejam severamente condenadas e, definitivamente, banidas.

A banalização da recepção acrítica e apática destes acontecimentos/situações não deixa de representar o modo como se elege validar a ruína da Democracia, escolhendo os favorecidos ou os proscritos do regime. Não estaremos, já, a descrever um regime ditatorial?

Talvez pudesse, aqui, invocar Hannah Arendt, mas sendo já uma trivialidade citá-la, opto por referir um tweet recente de Arturo Pérez-Reverte “O tempo em que podias esconder a tua ambição, já passou. Agora, o teu único refúgio é o poder” (in Tácito. Historias. II, 76).

(O dia, agora no Funchal, permanece frio, mas sem nuvens. Recolho-me diante do oceano, sem ainda perceber se aprendi a olhar o mar. Saberia Galeano de Sophia de Mello Bryner? Pergunto-me e cito: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar”. Deixo que o mar me re-aprenda a sua imensidão, a sua serena força, a revolta da tempestade, as conquistas espelhadas da Liberdade. Posso regressar.)