O Paraíso e Outros Infernos – viajando com Agualusa

(*Professora na Universidade da Madeira / Investigadora no Centro de Estudos Comparatistas)

 

Publicado em abril de 2018 pela Editora Quetzal, O Paraíso e Outros Infernos, de José Eduardo Agualusa, reúne entradas de um diário do autor e crónicas publicadas na imprensa. Numa nota final, encontra-se a seguinte explicação: “Os textos deste livro foram reescritos a partir de crónicas publicadas no jornal brasileiro O Globo e no jornal eletrónico angolano Rede Angola. Incluíram-se ainda diversas entradas de um diário que escrevo há mais de trinta anos. Todos estes textos, salvo raras exceções, foram escritos entre 2013 e 2018. Não estão organizados por ordem cronológica. O português que utilizo é o português inteiro, global, que se fala em Angola, no Brasil, em Portugal, em Moçambique, em Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, na Guiné-Bissau, Timor-Leste, Galiza e Goa. É a minha língua. (p. 335 – sublinhado meu).

Trata-se de um artefacto complexo, simultaneamente crítico e poético, que cativa o leitor. O esbatimento das fronteiras genológicas e a escrita feita de ritmos e de melodias fazem jus às modernidades literárias do escritor. Nascido em Angola, mas com o sentido de uma pertença identitária múltipla, ele assume diversas influências interculturais. O contributo cultural, literário e artístico da lusofonia (de Portugal, do Brasil e de África, em particular) está patente neste livro. Assim acontece, regra geral, em toda a obra de Agualusa. A forma de ser visto pelo Outro é, ainda, reflexo do seu multiculturalismo: “Quanto a mim sou meio indiano na Índia, meio malaio na Malásia, de raça indecifrável nos Estados Unidos, e totalmente árabe em qualquer país do Norte de África, na Bélgica, em França, na Alemanha ou na Suécia” (p. 6). Ser-mundo é, na minha opinião, pertencer a territórios dialogantes, respeitando a gramático do humano.

Espelho de discursos diversos, o livro que apresento é marcado pela fluidez e pela luminosidade, apesar das inúmeras críticas ao poder político e social. As viagens, que levam o escritor a percorrer uma geografia de afetos, acentuam a intertextualidade e a interdisciplinaridade da sua escrita. Reconhecendo um património literário e artístico diverso, o autor lembra, não raras vezes, personalidades do mundo da literatura, da música, do cinema ou da fotografia. Convoca Jorge Luís Borges ou Emil Cioran. Refere Mark Twain ou Luis Sepúlveda. Assim acontece com Charles Baudelaire ou com Gabriel García Márques. Menciona Mia Couto e Onddjaki. Lembra Maria Bethânia, Chico Buarque ou Cesária Évora. Destaca Jacques Brel ou Leonard Cohen. Realça a voz de António Zambujo. Muito se tem falado de desterritorializar o pensamento. O Paraíso e Outros Infernos dá conta do valor da cultura, em geral, da literatura e da arte, em particular, desde que não assentem no artifício do momento.

José Eduardo Agualusa salienta então o talento de Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, João Tordo, Valter Hugo Mãe ou de Valério Romão. São, efetivamente, nomes incontornáveis da literatura portuguesa mais recente. Agualusa recupera, também, Eça de Queirós, Fernando Pessoa ou Vergílio Ferreira. O escritor sublinha, assim, que as diferentes artes e as (geo)grafias afetivas rizomáticas podem juntar-se num ato de “relliance” e de reconhecimento planetário. Nesse sentido, as vozes da Harlem Renaissance (Langston Hughues) e as tonalidades de um tempo mais atual (Chinelo Okparanta) não são descuradas. As palavras de Alaa al-Aswany ou de Achille Mbembe são, de igual modo, convocadas. Por pertencerem a um património-mundo, essas inspirações fazem, naturalmente, parte de um referencial aberto, livre e tolerante.

Apontarei, de forma sumária, algumas questões que constituem a arquitetura geral da obra de Agualusa. A reconstrução identitária pós-colonial, a recriação da memória cultural da colonização e as dinâmicas pós-independência estão patentes neste livro. Estas questões continuam presentes nos dias de hoje. Se o conhecimento do passado e o olhar atento sobre a atualidade é ponto assente, não é menos verdade que a crítica à repetição distópica é uma chamada de atenção constante. Começo por salientar o seguinte fragmento: “Os novos monstros caminham entre nós. Alguns movem-se com subtil discrição. Outros são figuras públicas, respeitadas e com enorme influência. Entre todos estes novos monstros há os triviais e aqueles cujas deformações morais, de tão insufladas, os transformam numa espécie de supermonstros. A impressão que tenho é que esta última espécie se vem propagando de forma inédita e assustadora.” (“1. Catalogando monstros”, p. 13). Dá que pensar.

Apraz-me, todavia, evidenciar algumas notas utópicas, de sabor poético, como sugere a citação: “Eu já escolhi a minha praia. Fica numa ilha, muito a sul, onde toda a gente se conhece pelo nome. O fim do mundo nunca chegará a um lugar assim.” (“2. A ilha dos poetas mortos”, p. 14). Agualusa escolheu Muhipiti, a Ilha de Mocambique, pois “a Ilha tem sido um magnífico exemplo de tolerância religiosa, étnica e cultural.” (“75. A escolha de Muhamed”, p. 242). Há quem opte por outras ilhas. Gosto da minha, por razões diferentes.

Nos meandros dos utopismos, os princípios de “responsabilidade” e de “esperança”, elencados por Ernst Bloch, adquirem uma importância fundamental nas reflexões de Agualusa:

“Em democracia, toda a gente tem o direito a expressar as suas ideias. Até mais do que isso: as pessoas devem ser encorajadas a elaborar ideias diferentes e a defendê-las em público. A vitalidade de uma sociedade democrática pode medir-se pela sua diversidade.” (“Quinta-feira, 5 de maio de 2016”, p. 39). E: “Uma democracia é tanto mais avançada quanto mais capaz for de combater a corrupção e, em particular, a corrupção da política. Creio mesmo que uma democracia é tanto mais avançada quanto menos ricos forem os seus políticos.” (“Louco é quem não sonha”, p. 163). Achei as afirmações, particularmente, interessantes e atuais.

O livro e uma crónica apresentam o mesmo título. Partindo de uma figura cimeira da cultura ocidental, Agualusa não apaga as opiniões mais dissonantes de Jorge Luis Borges. Realça, porém, o pensamento inovador do autor argentino. José Eduardo Agualusa lamenta “[a] falta de ideias” (p. 190) de muito escritores atuais. Rendidos ao mercado editorial, seguem fórmulas e procuram freneticamente as luzes da ribalta. Verdade ou consequência? Eis a questão. Sublinho, contudo, a nota humorística de uma das crónicas. Através do efeito parodístico, o escritor convida o leitor à reflexão:

“Há muitos anos escrevi um conto sobre Borges, a partir de uma frase muito conhecida do escritor: “Imagino o Paraíso como um lugar onde se dialoga. Como uma biblioteca.

No meu conto, o escritor fecha os olhos em Genebra e descansa entre bananeiras. Algures, perto dele, levita uma mulher nua. Borges, que não nutria o menor afeto por paisagens tropicais, e nem tão pouco por belas mulheres levitantes, convence-se que despertou no Inferno. Ocorreu-lhe depois que talvez Deus o tenha confundido com García Márquez e aquele seja o Paraíso do colombiano. Então alegra-se: sendo certo que o Paraíso de Márquez era agora o Inferno dele, então o Paraíso dele haveria de ser certamente o Inferno do Outro. Não há Paraíso, afinal, que não seja também o Inferno. O que para uns é maravilhoso, para outros afigura-se um perpétuo tédio ou um prolongado horror. “ (“54. O Paraíso e outros Infernos”, p. 190). Trata-se de uma recriação disforicamente utópica: “l’enfer c’est les autres!”. Disse Jean Paul Sartre. A face e o reverso de uma medalha parecem continuar a ser apanágio da Humanidade. Pode (ainda) ser muito atual.

No entanto, das disforias emergem alternativas. Veja-se, por exemplo:

“CERTAS MANHÃS, ao ler os jornais, aflige-me a dura evidência de que a Humanidade é irremediavelmente má, e que o mundo está à beira da grande catástrofe. No dia seguinte, porém, já me parece o contrário: o mundo talvez esteja, afinal, recomeçando. Talvez estejamos simplesmente na confusa fronteira de um tempo novo, aturdidos pela luz futura, e com alguma dificuldade para nos libertarmos da brutalidade com que, durante milénios, lidamos uns com os outros e com a natureza à nossa volta.” (“A consciência do mal”, pp. 109-110).

Atente-se no excerto com que termino esta nota. Permito-me constatar que, na presença e na circularidade marcante de um tema – dos monstros e da monstruosidade –, José Eduardo Agualusa relembra:

“Tempos como aqueles que vivemos são suscetíveis de engendrar monstros. Contudo, também são capazes de gerar sonhos enormes e poderosos. Mais do que nunca é urgente revisitar utopias antigas e projetar novas. (…). É urgente procurar outros caminhos. Sonhar não é Loucura. Loucura, hoje, é não sonhar. Na certeza, porém, de que esses caminhos, esses sonhos, só podem ser encontrados por meios pacíficos e democráticos. A democracia, essa utopia primordial, não pode ser posta em causa. Todos somos poucos para a defender. ” (“45. Louco é quem não sonha”, pp. 164-165).

Li este livro (quase sempre) com um grande sorriso nos lábios. A referência a Luaty Beirão e a afirmação “A liberdade é um vício que se entranha.” (“Quinta-feira, 28 de abril de 2016”. p. 38) levam-me a acreditar numa cidadania atenta e numa sociedade de sonhadores voluntários (título que subtraio, em parte, a outro livro de Agualusa).  Procuro viajar em sentido contrário às seguintes observações: “As pessoas…têm medo de manifestar qualquer opinião que fuja da norma. Têm medo de falar alto, de rir alto, de pensar alto. Enfim, têm medo de existir demais. Então existem diminutamente, dissimuladamente, invisivelmente. O medo roubou-nos a individualidade. O medo rouba-nos a vida.”  (“Segunda-feira, 19 de junho de 2017”, pp. 266-267). Adio entropias. Acredito, sobretudo, no modo utópico: permiti-me (permitir-nos-á?) seguir por trilhos renovados.