Inqualificável e intolerável

Na passada quarta-feira, dia  2 de Maio corrente, numa entrevista concedida à SIC-Notícias, o ministro dos Negócios Estrangeiros e n.º 2 do Governo da República, Augusto santos Silva afirmou que “a ética, não é apenas a da lei”.

Nesse mesmo dia, e também a propósito dos casos que envolvem o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o ex-ministro da Economia, Manuel Pinho, quer o presidente do PS e seu líder parlamentar na Assembleia da República, Carlos César, quer o porta-voz do partido, o deputado João Galamba, já haviam comentado o assunto, afirmando-se “envergonhado” e “enraivecido” (César) e “incomodado “ e “embaraçado” (Galamba).

Ou seja, de repente, o PS deixou de fazer de conta que os casos de Sócrates e de Pinho não tinham contornos gravíssimos,  na medida em que  um é acusado de corrupção e de branqueamento de capitais, etc., e outro suspeito de ter recebido durante mais de uma década uma avultada “mesada” do Grupo Espírito Santo, inclusive no decorrer do exercício de funções ministeriais, depositada em contas offshore.

Sendo certo que competirá  aos tribunais determinar se, um e outro, cometeram ilícitos criminais, do ponto de vista ético, não restam dúvidas, designadamente de que o ex-primeiro-ministro teve cortamentos completamente inaceitáveis, confirmados, aliás, pelo próprio ao assumir que viveu com dinheiro emprestado pelo amigo, Carlos Santos Silva, usufruindo de uma vida de fausto, nomeadamente em Paris, mas não só, incompatível com os seus rendimentos pessoais.

Neste particular, releve-se a posição adoptada pelo fundador do PS e criador do Serviço Nacional de Saúde, António Arnaut que em declarações ao jornal on-line “Observador” foi peremptório:  “Levou uma vida acima das suas possibilidades, acima daqueles que são os padrões indissociáveis da ética republicana e socialista”.

Em sentido contrário, pronunciou-se Arons de Carvalho, também fundador do PS, que não teve pejo em afirmar  ao jornal “I”: “Não acho que seja reprovável uma pessoa (Sócrates)viver com dinheiro emprestado de outra”. Simplesmente deplorável! O mesmo se deve dizer, de resto, relativamente a Manuel Pinho, cujo silêncio é por demais ensurdecedor.

É verdade que, quando José Sócrates foi detido, no âmbito da designada “Operação Marquês”, António Costa disse que o mesmo iria bater-se  pela “sua verdade”.  O que podia ser já interpretado como um sinal de distanciamento. Mas, deduzida  a acusação, conhecidos os crimes que lhe são imputados, e tendo em conta o longo tempo que ainda distará do culminar deste processo, não se vislumbra como é que o PS poderia continuar a conviver com tudo isto, sem, entretanto, tomar  uma posição clara – a propósito da expressão “sua verdade” atrevo-me  a dizer que, com o decorrer do tempo, Sócrates contará com, cada vez menos, crentes na sua versão dos factos, dos acontecimentos. Pessoalmente,  devo acrescentar que fiquei siderado com a declaração proferida por Sócrates, durante os interrogatórios a que foi submetido, de que a grande motivação para o seu envolvimento na política era a “vaidade”. E eu a pensar que as pessoas o fazem para contribuir para solucionar problemas, para edificar uma melhor sociedade. Ingenuidade minha… .

Provavelmente, se Rui Rio não tivesse decidido querer ouvir Pinho no Parlamento, o PS manteria a chamada low profile. E limitar-nos-íamos  a ouvir vozes isoladas como a da eurodeputada Ana Gomes que, uma vez mais, honra  lhe seja feita, fez questão de, de forma clara, e frontal, assumir que, o PS não poderia comportar-se como se nada de grave se passasse.

E, com a entrada em cena, leia-se declarações de Carlos César, João Galamba e até do próprio António Costa (a partir do Canadá) tudo se precipitou. Ao ponto de José Sócrates ter comunicado a demissão do PS. O que, convenhamos, já, há muito, devia ter feito.  Ou o próprio PS, como sugeriu Pedro Adão e Silva, na RTP, accionado os respectivos Estatutos e procedido à sua expulsão, pelos elevados danos causados ao partido.

Não sei se, como perspectiva Manuel Alegre, se abriu no PS uma “caixa de pandora”. Sei é que o silêncio do PS era cada vez mais insustentável. Porque independentemente do que os tribunais vierem a sentenciar, do ponto de vista  ético tais comportamentos não são razoáveis, sensatos, aceitáveis, toleráveis. E mesmo que, de imediato, possa  haver turbulência e até consequências eleitorais, creio que o PS, se for capaz, de ser mais exigente,  com quem exerce funções públicas, a quaisquer níveis, acabará no futuro por obter ganhos de causa, designadamente de credibilidade política.

O mesmo  se deve dizer, aliás, sobre o chamado caso das viagens dos deputados das Regiões Autónomas na Assembleia da República. Um caso em que, pelo que se sabe,  não há inocentes.  Só culpados. Porque é inaceitável que recebam em duplicado por viagens que até poderão não fazer.  E que, ainda por cima, Carlos César que, de acordo com a investigação efectuada pelo “Expresso”, é o principal beneficiário em termos monetários do referido procedimento, tenha o desplante de considerar que se trata de uma situação “legal e eticamente irrepreensível”. Legal, até pode ser, à luz dos regulamentos em vigor na Assembleia da República, mas, sob o ponto de vista ético, da lisura, da decência, o comportamento dele e dos demais deputados envolvidos é totalmente inaceitável, reprovável e intolerável.

Um comportamento que, pelo que revelou recentemente a RTP, é adoptado inclusive por deputados eleitos por outros círculos eleitorais, que não os das regiões autónomas, que vivendo em Lisboa, declaram moradas de outras localidades do continente, onde possuem também casa, para beneficiarem de subsídios  de deslocação melhor remunerados.

Procedimentos, esquemas, expedientes que podem até ser legais à luz da lei ou das regras vigentes, mas que revelam falta de seriedade, de rigor no exercício das funções que ocupam.

É a essa mesma luz que não pode deixar de questionar-se a postura adoptada por Paulino Ascensão que tendo inicialmente, em declarações ao “Expresso”, justificado o recurso ao reembolso do subsídio de mobilidade com o argumento de que, às vezes, os 500 euros concedidos  por viagem pela A. da República,  não suportariam o custo da mesma, face à polémica instalada, decidiu renunciar ao mandato por considerar o seu comportamento incorrecto, mas simultaneamente mantem-se como coordenador do BE na Madeira. Numa atitude própria de uma espécie de homem duplicado, em que é possível separar o deputado do político. E, para cúmulo, resolve doar o dinheiro recebido a título de reembolso de viagens a um instituição cultural de cujos corpos gerentes faz parte.

Para completar o ramalhete houve ainda os deputados do PSD, Paulo Neves e Rubina Berardo, que, vivendo em Lisboa há anos, declararam escasso tempo antes de serem eleitos, residência no Funchal, e Sara Madruga que, começou por não responder ao “Expresso”, para depois com o “caldo entornado” anunciar que iria devolver o dinheiro entretanto recebido. Não menos grave foi a posição adoptada por Carlos Pereira do PS que tentou vitimizar-se pelo facto da actual liderança regional do seu partido ter-se distanciado do seu comportamento, quando, quem tem razões  para se sentir  ofendido, são os cidadãos cumpridores das suas obrigações, de modo especial  quando há quem os tenta tratar por “tontos”.

O que é facto é que, se tudo fosse transparente e legítimo, não se entenderia que, ao que se sabe, o Parlamento nacional se prepare para alterar as regras que envolvem as designadas viagens dos deputados. Provavelmente no pressuposto de que ”à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer”!

Naturalmente que as questões que temos vindo a abordar no presente texto não têm todas a mesma gravidade. Mas, em todas elas sobressai um traço comum: uma certa cultura do chico-espertismo, de videirismo.

Que leva, por exemplo, a que quem queira enveredar pela vida política considere como primordial ostentar um canudo, um diploma para enriquecer o respectivo curriculum e certamente poder impressionar os demais . Obtido não interessa como. Esquecendo que nos nossos dias tudo acaba por se saber, porque tudo, mal ou bem, é vasculhado.

E em que se desvaloriza por completo os exemplos que, designadamente a história da Europa regista, de políticos que deixaram uma marca indelével e que não possuíam  formação escolar superior, como foram os casos nomeadamente do francês Jacques Delors e do alemão Willy Brandt, só para citar  dois nomes.

Mais grave ainda é não perceber ou ignorar, pura e simplesmente, as nefastas consequências que todos estes acontecimentos acabarão por ter,  mais tarde ou mais cedo, se não houver um arrepiar de caminho, na própria democracia portuguesa enquanto tal.

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* Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Post Scriptum:
1) Bitaites: a criatura que deixou como legado o famigerado PAEF que infernizou a vida a milhares de cidadãos desta terra, continua  a procurar marcar a agenda. Com supostas soluções para tudo e para nada. Às tantas, o dito cujo julgará que ainda usufrui do estatuto que atribuiu a si próprio, de auto-intitulado “único importante” cá do burgo, e nem se dá conta de que fala sózinho. Formulando desafios a que ninguém liga ou responde.
Ao mesmo tempo que tenta impingir a falsa ideia de que a dívida da Região, de que é o principal responsável, resulta única e exclusivamente da satisfação de condições básicas de vida às respectivas populações, que ao longo dos tempos lhes foram negadas. Como se não tivesse havido o outro lado da história. Da construção de obras inúteis e megalómanas, designadamente após a criação das denominadas Sociedades de Desenvolvimento. Que mais não foram que sociedades de despesismo,  de endividamento, de regabofe financeiro, de desbarato de dinheiros públicos.

2) Amnésia:  pelos vistos, há muita gentinha sem memória. Que facilmente se esquecem  do que o seu próprio partido  foi dizendo ao longo dos tempos de quem se gabava de ter estado mais tempo no poder  do que o ditador Salazar. E que invocou, e bem, a existência de défice democrático na Madeira.  Podiam ao menos recordar-se dos ataques pessoais e dos insultos aos outros que o dito cujo proferiu ao longo de décadas no parlamento regional e que culminaram com a sua designação  como “casa de loucos”. Mas nem isso. Afinal, talvez tudo se explique por aquele registo de entrega ao edil funchalense de um exemplar daquela obra importantíssima  que dá pelo nome de “Relatório de Combate”.