O medo da mudança

Os católicos em “situação irregular”, ou seja, aqueles que vivem uma nova união após o divórcio ou vivem uma união fora do casamento, podem ter acesso aos sacramentos, como a confissão e a comunhão, mas “em circunstâncias excecionais”, defende o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. Aconselha que os sacramentos se realizem “de modo reservado” e que se deve “propor a vida em continência na nova situação”, ou seja, sem prática de relações sexuais”. Esta é uma parte da informação veiculada pelo Jornal de Notícias, que aqui reproduzimos com a devida vénia, mas todos os orgãos de informação acabaram por divulgar a notícia, como de resto se justifica face à relevância da declaração, vinda de quem vem e sobretudo pela incredulidade que provoca a quem pare 30 segundos para ler o que está escrito. Trinta segundos não é suficiente, porque à primeira custa a acreditar e é preciso ler várias vezes.

Esta posição assumida pelo Cardeal Patriarca de Lisboa acaba por expressar aquilo que, ao longo dos tempos, a Igreja Católica tem vindo a apresentar como comportamento padrão perante acontecimentos que correspondem aos novos tempos, às sociedades, que não são imutáveis, que vivem novos problemas, novas situações, novos desafios, que não podem ser pura e simplesmente ignorados por uma organização que é desenvolvida por pessoas e está direcionada para as pessoas.

As pessoas precisam de fé, precisam de um conforto espiritual para os diferentes problemas, mas sobretudo precisam de respostas a questões do dia a dia, tão simples como isso, apenas questões que têm a ver com a vida, com os novos confrontos da pessoa com a vida, confrontos que há anos seriam diferentes, interpretados de uma determinada forma, mas que hoje exigem uma espécie de “atualização” para que se encontre, também aqui, um patamar de entendimento global e articulado. Não pode a Igreja estar alheada da sociedade, é preciso olhar de frente para os problemas, os novos problemas, para os quais não servem soluções antigas, exigem antes abordagens diferentes, sem com isso hipotecar os princípios católicos e a essência do que é defendido e que justifica a mensagem da própria Igreja.

Temos verificado uma confusão, às vezes muito conveniente, entre os novos desafios e as regras da Igreja Católica. E chegamos à conclusão que, algumas vezes, dá jeito propor a mudança, outras dá jeito dizer que a Igreja é assim, tem regras, é para cumprir e ponto final, quem não está bem muda-se. Isso seria verdade se a Igreja fosse um espaço fechado sobre si próprio, embora às vezes pareça. Não, a Igreja é do povo e para o povo, como tal não pode apelar ao povo apenas quando interessa. Não pode querer chamar o povo e quando este tem problemas coloca-se de fora. Está ali para ajudar o povo, numa missão nobre que está na génese da sua constituição enquanto movimento que vai ao encontro dos mais carenciados e das famílias, defendendo o núcleo familiar como ninguém. Defender a família no seu todo e não apenas na sua forma. A família não está na forma mas naquilo que ela representa de valores, de defesa dos mais desfavorecidos, na solidariedade, na entreajuda e na comunhão com aquilo que as pessoas acreditam: na Fé. Uma fé que inclusive está acima da própria Igreja, tem a ver com cada um de nós e naquilo que realmente acreditamos.

Não é por acaso que o povo, do alto da sua sabedoria, diz tantas vezes, nem de propósito, que “o hábito não faz o monge”. E realmente não faz. O monge tem hábito, mas a vocação e a missão estão nas ações. As diferentes formas de família, que os tempos foram trazendo, são coisas destes tempos, não são de outros, são destes. Tal como a Igreja católica deve ser uma organização fiel aos seus princípios, mas virada para os tempos e não cristalizada pelo tempo. Sair da sua zona de conforto, da sua irredutível posição, em múltiplos aspetos, como se a vida cá fora fosse uma coisa e a Igreja lá dentro fosse outra. Tudo muito secreto, muito reservado, não para não fazer mas para não se saber. Parece até algo que, dito assim, está em contrasenso com o que deve ser uma Igreja de verdade e da verdade.

E como se não bastasse, temos agora D. Manuel Clemente, que muitos até tinham como uma figura aberta e sobretudo sensata, a vir dizer que os recasados não devem fazer sexo. Não devem, manda a Igreja, logo não fazem. É assim, como em tantas outras coisas que acontecem nas sociedades de hoje e sobre as quais a Igreja Católica tem uma posição demasiado conservadora, com riscos de estar a pensar uma estratégia para uma comunidade que não existe. E já estamos a ver o que vem acontecendo, mas acima de tudo o que vai acontecer. Uma Igreja que olha uma sociedade como se de outra se tratasse, vai assobiando para o lado e quando der por si assobia sozinha, para falarmos numa linguagem que se perceba claramente.

É pena que o Papa Francisco, que é a esperança em pessoa, não tenha ainda conseguido que a Igreja desenvolvesse o debate que faz falta, o debate de ideias, mas o debate essencialmente de abordagem sobre os novos problemas, da mesma forma que a medicina evoluíu face às novas doenças. Espiritualmente, mas também em atitude, toda a sociedade de hoje exige um alargado debate no seio da Igreja Católica, sem colocar em causa a base dos princípios. À Igreja não se pede que ceda sempre nem se quer que ceda nunca, apenas que cumpra aquilo que é a essência da sua existência, o bem do próximo, a família enquanto conceito, a solidariedade.

A Igreja tem receio de enfrentar o mundo novo e, com isso, de incentivar e promover a adaptação a esses novos desafios, ou pelo menos ao debate, simplesmente debate, sem com isso colocar em causa a sua existência.

Mas cuidado. O medo da mudança pode representar o fracasso da mensagem!