Respeitar os Cidadãos

 

 Da exasperação à lamúria, do grito à surdina, do inconformismo ao pesado recolhimento da inevitável aceitação, da réstia de esperança à violência da verdade, multiplicam-se as conversas, os desabafos, a comiseração, a solidariedade:

– O Pai e o filho bebé, lá foram, uma vida inteira pela frente…

– Já viste a desgraça?

– Quem teve a sorte de ouvir o barulho, ainda teve hipótese de fugir;

– Mas a Mãe e o filho, já homem, é a mesma coisa, o amor é o mesmo…

– O ano passado foram os incêndios, agora a árvore, o que estará para vir.

– A festa da Senhora do Monte anda azarada.

– A árvore caiu ao pé de mim, foi Deus que me salvou.

– Deus…

Outras se iniciam e interrompem no mesmo tom, de incredulidade e tristeza, a festa da fé deu naquilo, com a certeza de que a vida está aí, para além da morte, da tragédia, do desespero, da angústia e do sofrimento, e de que é preciso enfrentá-la; toda a algazarra cacofónica que se vai generalizando em torno das causas, dos responsáveis ou da sua inexistência, dos culpados e dos inocentes, dos proprietários do cenário de horror e dos que o não são, parece ter destinatários próprios, escolhidos onde a dor não chega e onde se questionam outros argumentos e interesses; as pessoas, essas, afligem-se com os que, de vez, nos deixaram e com os que, inconsoláveis, ficam a conviver com essas ausências, a lembrá-las, a consumirem-se nelas, a esgotarem-se na sua verdade confirmada.

As sirenes das ambulâncias já se não ouvem, do espantoso e velhaco desastre vai-se falando menos, cumpre-se o luto oficial, começam a cumprir-se os mínimos, enceta-se o caminho inevitável para o esquecimento; é a vida!

Mas, porque há sempre um mas, nos dias que correm, em democracia e num Estado de Direito, subsiste, claro, a questão política, – a questão da política -, já que são os cidadãos que estão no centro da tragédia e nela podem ter tido influência decisiva as instituições que os representam e a quem incumbe a sua segurança, a defesa dos seus interesses e dos seus direitos, e a gestão das legítimas expectativas de todos.

Há política, portanto, mesmo que a dor e o recato aconselhassem algum distanciamento e pudor.

O assunto é, digamos, politizável.

E, ao contrário do que alguns, até com responsabilidades substantivas e obrigação de neutralidade, querem fazer crer, – fazendo ecoar a imagem pouco apologética de que gozam a política e os agentes políticos -, dar dimensão política ao que aconteceu é a obrigação de todos, “politizar” o sucedido é uma exigência, não é uma opção, pela razão, elementar de que, e repito, no meio, estão cidadãos, com todos os seus deveres e obrigações e a reciprocidade de uma relação, que se pretende leal, séria e fiável entre representantes e representados.

Outra coisa, evidentemente, é o modo. E, na ânsia de protagonismo, de visibilidade, de acumulação de créditos de exercício político, de cumprimento de agenda mediática, de sublinhar grande proximidade aos eleitos, de desfigurar o contraditório, afigura-se-me, adoptou-se a metodologia errada e o tom errado; a pueril troca de acusações, de insinuações, de suspeitas, de desmentidos, de apresentação de “provas” e “contraprovas” e de proclamações de inocência, vexam o debate político que se pretende sóbrio e elevado e atingem a democracia e a participação onde elas deviam ser mais preservadas e dignificadas.

Há política no que aconteceu e que nos aflige e que queremos ver dilucidado e resolvido na parte em que tal é possível, a da vida que permanece; saibam os responsáveis, civis e religiosos, estar à altura das suas obrigações e assumir de corpo inteiro aquelas que forem as conclusões da investigação a que se vai procedendo, sem cedências, mas honrando os cidadãos.

Entenda, também, a comunicação social, globalmente considerada, qual o seu papel neste melindroso momento social e político e, estou certo, este pode ser um momento de afinação e afirmação de boas e saudáveis práticas de cidadania e de responsabilidade.

Começa a ser imperioso substituir indesejáveis comportamentos que o povo e a democracia rejeitam. Em nome dos que morreram e de todos os que, feridos ou não, tanto sofreram com o sucedido na Festa da Senhora do Monte, a política tem a obrigação de se engrandecer e de justificar a nobreza que a sua actividade encerra.

 

 

 

PS

Quero, nesta oportunidade, junto das famílias das vítimas, de todas elas, expressar as minhas condolências e a manifestação da minha sentida solidariedade.

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Nota: o autor deste texto escreve de acordo com a antiga ortografia.