Onde o mar encontra terra e a circunda num abraço lá está a ilha. Raramente está só. À vezes há outras ilhas que lhe fazem companhia, cada uma com sua forma de beleza e risco. Todas juntas ganham um nome de origem nobre que lhes confere importância e dignidade: Arquipélado. Nos dois componentes que derivam do grego, o prefixo arck designa o primeiro elemento duma hierarquia, o chefe, o principal. Pélago é a palavra que evoca a profundidade do oceano, o seu abismo e imensidade.
Porções de terras marinhas que dominam uma área restrita , e enfrentam, em constante desafio, a turbulência dos oceanos, seus caprichos, marés e maresias, seus remoinhos e maremotos, os Arquipélagos detêm uma poderosa energia telúrica, acusam a força duma índole inabalável e ganham o pendor, a heroicidade e o orgulho dos resistentes. Imaginam-se Paraísos e essa crença ou veleidade, como quisermos chamar, ameniza a condição do casulo e exalta o sentimento de pertença do espaço. Quem vive num paraíso sofre duma dualidade inquietante : ou se reduz e submete às lianas fatais da paixão, ou delas se evade pela inteligência desperta e o espírito activo. Em qualquer dos casos há que entender que o produto das ilhas é sempre um apelo ao conhecimento ao fazer parte da espantosa aventura da vida, tendo em vista o potencial criativo dos povos. Umas mais do que outras as ilhas conseguem, dentro das respectivas fronteiras naturais, ampliar as suas potencialidades, no sentido da criação duma cultura popular de merecido interesse. A Ilha Terceira dos Açores , simpática e festiva vizinha do Pico é disso um exemplo notório. E digo festiva pelo que depois explicarei.
A Ilha Terceira é, antes de tudo, para quem pela primeira vez pisa os seus verdes intensos e luminosos, uma bela extensão de alfombras e panos de arrás. Esta é a sua paisagem de pastagens, moradia de «vacas felizes», tecido de relvas a cobrir as colinas, numa vastidão inesperada em território tão pequeno. Disposto em manta de retalhos, a perder de vista, cada talhão é rodeado por muros baixos de pedras basálticas que se juntam umas às outras em equilíbrio “instável”, sem argamassa, numa cuidada e eficaz instalação que faz resistência aos ventos, perfeito exemplo para o aforismo «a união faz a força». Estas «sebes» de pedra tosca são comuns à ilha do Porto Santo, no Arquipélago da Madeira, ao Pico e a outras ilhas dos Açores , método de construção que salienta a capacidade de adaptação, pelos habitantes, das características ambientais do solo rochoso na sua expressão primitiva. Estas divisões protectoras das culturas, chamadas de currais, permitem, nestas duas ilhas, o cultivo da vinha, com a particularidade de servirem, no Pico, também à plantação abrigada das figueiras. Algumas delas são tão pequenas e aconchegadas que me despertam a vontade de chamá-las «berços», em vez de currais. No alvor da Primavera despontam os novos rebentos das plantas neste maravilhoso « berçário» que o engenho popular inventou.
No Pico distinguem-se os currais, e o alto coração da terra; na Terceira, a grande manta de retalhos e a Serra do Cume.
E é na Terceira que se assiste à grande época festiva das Danças do Entrudo e do Teatro Popular. Poucos conhecem esta expressão genuína do povo terceirense que ocupa mais de metade da população e é preparada durante o ano inteiro. A ilha possui dois Conservatórios, uma Escola de Pandeiros e uma tradição de Danças, Bailinhos e Comédias que, na época do Carnaval leva aos tablados das sessenta Colectividades, ou Sociedades Recreativas, os seus espectáculos de Teatro, Música e Dança, num verdadeiro Festival de Arte Tradicional duma qualidade surpreendente. De entrada livre os espectáculos sucedem-se uns aos outros durante três dias e circulam pelos vários palcos onde se ouvem Fanfaras vibrantes e se revelam extraordinários actores, cantores, tocadores de pandeiro, que nos espantam pela sua alegria contagiante e dons histriónicos. Há autores de grande capacidade criativa que exteriorizam nos seus textos a graça e a inteligência do chiste causticante e oportuno, o tom satírico habilmente expresso na excelente prestação dos actores. De cariz social ou político, para além do seu aspecto crítico, apelam finalmente a um sentido positivo da vida e cada espectáculo de vinte a quarenta minutos, termina sempre com uma longa cantiga que junta um agradecimento a uma mensagem de fraternidade.
Estas Danças Bailinhos e Comédias trazem duma tradição distante o modo de sentir e de viver do povo. É um teatro pensado, empírico, divertido e vivo que nos últimos anos tem evoluído no sentido de representações mais cuidadas, sem que se perca a originalidade e as características que lhe determinam o estilo e o desígnio: Do povo para o povo. A assistência é enorme, mas há lugar para todos, gratuitamente. Só é preciso saber esperar à medida em que se sucedem as representações. Ninguém se atropela, o civismo é perfeito. Desde o início da tarde, pela noite dentro, sem hora certa para terminar, uma autêntica terapia do riso, revulsiva e desintoxicante, que nos desperta prazer, respeito e admiração.
Esta gente guarda as ilhas naturalmente com uma perfeita interiorização do seu património, coisa sua, sem que lhe importe a opinião alheia. Os estrangeiros andam ali à vontade, mas não se apropriam dos espaços, como acontece em outros lugares. O pé americano está de passagem nas Lajes, mas ninguém lhe copia a pegada. Açorianos são genuínos e portugueses. Sobretudo são das Ilhas. Orgulhosamente.