Obrigada, Dr. Soares

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Tinha quase pronta uma crónica a que chamo “A minha alma ‘tá parva”, que fica no arquivo do computador, adiada para depois, porque hoje não me apetece dar-lhe continuidade.

Desde que Mário Soares adoeceu gravemente, e muito em particular a partir da sua morte, tenho um pesado sentimento de perda. Perda por quem marcou, como poucos, a minha geração; por quem consubstancia muito do que de mais significativo aconteceu a este país e às suas gentes; por quem foi um notável político com marcado sentido de Estado; por quem elegeu os valores superiores da democracia e da liberdade como fios condutores da sua vida. Relembrar a sua acção e a sua intervenção cívica e política é qualquer coisa de impressionante – pela dimensão, pela capacidade, pela determinação.

Não convivi com Mário Soares, encontrei-o algumas vezes, falei com ele outras tantas. Aparentemente bonacheirão, o avô que muitos gostaríamos de ter, não se revelava uma personalidade simples nem fácil. Nem podia. Era um homem de uma grande cultura. Um homem educado numa família de princípios democráticos, princípios que seguiu durante toda a vida. Quando tinha um objectivo, lutava por ele com determinação – que, mais que o exílio e as prisões; mais que as complexidades da governação e das decisões arriscadas; mais do que o difícil processo de acabar com a guerra colonial e receber milhares de retornados que eram, a um só tempo, outros tantos milhares de mundos e de problemas; muito mais do que tudo isto, sofrer o degredo em São Tomé, e voltar tão sólido como antes, exige evidentemente coragem e convicção.

Nem sempre estive de acordo com decisões e opções tomadas por Mário Soares. Como é natural. Só quem não faz nada na vida, quem não toma posições de corpo inteiro, quem passa cinzento e adormecido pelos conflitos mundiais, quem se esconde e demite de viver é que poderá, talvez, dizer que fez tudo bem. O mesmo é dizer que não fez, de facto, nada! Soares não foi assim. Fez muito, fez mesmo muitíssimo. Acertou e falhou. Agiu bem e procedeu mal. Como acontece sempre. No balanço final, depois das ‘contas feitas’, o fiel é-lhe francamente favorável.

Em minha opinião, mereceu as honras de Estado que lhe foram prestadas no funeral. Por tudo o que fez, pelos cargos que desempenhou, pela sua vida. Vi pela televisão, como certamente muita gente, as cerimónias nos Jerónimos e, depois, a saída para a última viagem nas ruas de Lisboa, onde tanta gente ao longo de todo o extenso percurso expressava os seus sentimentos com palmas e saudações, com adeuses e com lágrimas. Como certamente muita gente, também eu me emocionei. Com os discursos dos oradores, alguns a raiar o limite da emoção protocolarmente exigida. Com a postura de quem ali estava destacado em trabalho – em particular o coro e a orquestra do São Carlos, bem como os corpos de guarda de honra.  Emocionei-me com as expressões das caras e sobretudo com a expressão do olhar de toda aquela gente. Os semblantes sombrios revelavam sentimentos intensos. A tristeza marcava o ambiente. A comoção estava acima do protocolo.

Não pretendo ensinar ninguém. Mas a ligeireza, a ignorância, até mesmo a mesquinhez, com que hoje uns quantos vociferam contra Mário Soares, são bem elucidativas de uma grande ironia: é que Mário Soares é precisamente um dos primeiros a quem devem a possibilidade, a liberdade, de poderem dizer o que lhes apetece, sem que nada de especial lhes aconteça. O que não lhes devia dar o direito ao insulto. Mas até esse, dá!

Nos tempos pelos quais essa gente chora, nesses tempos, o que nos apetecia dizer era muitas vezes dito à almofada. E baixinho, não fosse alguém ouvir. Mário Soares foi um daqueles que falava alto. Apesar das ameaças, da prisão, do degredo, do exílio.

Pelo que fez e pelo legado que nos deixa, obrigada, Dr. Soares.