Entre os dogmas e as mentiras

 

icon-violante-matos-opiniao-forum-fn-c

Há exactamente 3 meses a Madeira vivia mais um dos piores dramas dos últimos tempos, os incêndios de Agosto. Passado este tempo valerá a pena reflectir sobre o valor dos dogmas e da sua proximidade à mentira.

Sempre que há uma tragédia surgem as vozes ‘sensatas’ espalhando o dogma de que, na circunstância, o que temos que fazer é unir e dar as mãos e que as perguntas e críticas são aproveitamentos políticos. E todos, ou quase, acham que assim é que deve ser. Por razões várias, pertenço ao grupo do ‘quase’.

Não vale a pena acusarem-me de que menosprezo o apoio, a necessidade de resposta à altura, a urgência de medidas de solidariedade porque é exactamente o contrário (e sei que há um sincero e imenso mundo de apoio, resposta e solidariedade muito para lá das câmaras de televisão ou dos microfones dos repórteres).

Mas sejamos claros, com o recurso a esse dogma (nome que se dá às afirmações que se apresentam como incontestáveis e indiscutíveis, mas que tantas vezes são puras mentiras – o que é a afirmação de que ‘não há alternativa’ senão a mentira mais descarada?) estas vozes ‘sensatas’ têm objectivos claros: calar críticas e, com sorte, virar a opinião pública contra os críticos; arranjar precárias soluções provisórias que com o correr dos anos se transformam em perigosamente definitivas; deixar correr os dias para o ritmo da vida fazer com que tudo caia no esquecimento; tentar ver se os responsáveis passam incólumes entre os pingos da chuva. Porque, se formos a ver, quem em primeiro lugar fala em necessidade de ‘sensatez’ é quem, de alguma maneira, devia prestar outras contas em vez de fugir às responsabilidades.

As reflexões que aqui deixo a propósito dos incêndios recentes aplicam-se ao que se passa com escorregamentos de terras, aluviões, ocupação do território e com sucessivos crimes ambientais e patrimoniais, de que esta Região tem exemplos em excesso! Claro que o nosso território é muito difícil e que os desastres acontecem. Mas a questão é saber se fizemos tudo o que era possível para, pelo menos, os minimizar.

E é esta questão da prevenção, do cuidado, do respeito pelas leis e ritmos da Natureza, que os decisores políticos não querem ver discutidos. Ao longo dos dias e meses elegem como padrão de comportamento o deixa-andar, a incúria, o facilitismo, a teimosia, tantas vezes o compadrio e certos interesses; por ‘milagre’ em alturas de desastre transformam-se em pessoas ‘sensatas’. Isto não é sensatez. Isto é usar o sentimento primeiro do ser humano quando confrontado com o sofrimento de quem vive ao lado. Isto é falta de carácter.

Sensatez seria, no decorrer dos tempos, tomar as medidas certas, evitar más práticas, descer do ‘arrogante olimpo da sabedoria’ até ao nível do conhecimento e ouvir quem tem experiência.

Sensatez seria não insistir nos erros por casmurrice, por arrogância, por desprezo para com opiniões contrárias.

Sensatez seria olhar para as serras e ver que elas não podem continuar a ser, como são com a floresta que têm e no estado em que estão, permanentes ameaças aos núcleos urbanos.

Sensatez seria acautelar a parte média e baixa do Funchal, por onde passam três ribeiras que nascem em cabeceiras de altitude e atravessam vales profundos e de pendentes agressivas e perigosas.

Sensatez seria cuidar das zonas urbanas mais altas da cidade, sempre das mais penalizadas quando há desastres.

Sensatez seria respeitar o ritmo do oceano e a sua ligação com a terra.

Sensatez seria fazer obras onde são realmente precisas e com todos os dados em cima da mesa, e não onde o consumo de betão seja maior.

Sensatez seria não ‘inovar’ com heliportos e disparates parecidos.

Sensatez seria não fazer todos os dias o contrário disto tudo. E é esse contrário que é miserável, do ponto de vista da democracia.

A menos que hoje, pouco mais do que um dogma, a democracia seja, ela própria, pouco menos que uma mentira, em vias de substituição pelo poder da alta finança.

Também aqui, e na medida da nossa dimensão, nesta Região.