Testemunho: uma cadela que tentou avisar a tragédia apesar da calmaria dos políticos

cadelaNo rescaldo da tragédia dos incêndios que assolaram a Madeira, as notícias caem em catadupa, de todos os quadrantes. Tudo natural. Multiplicam-se as vozes ora de amargura ora de gratidão pelo estoicismo daqueles que ousaram combater no terreno, horas sobre horas, o ritmo alucinado das chamas, detonadas pelo vento, pelo calor, por mãos criminosas e demais incúria. Sim, é bonito ver-se também multiplicar os gestos de solidariedade dos anónimos perante a dimensão dos prejuízos, os agradecimentos a Deus por guardar a Vida e as promessas de apoio de enésimas entidades.

No meio da voragem informativa, gostaria de partilhar convosco um caso que talvez nem tenha a dignidade de o tornar público mas que para mim teve um significado profundo. Os que me conhecem bem, sabem que não sou dada a pieguices nem a sentimentalismos de ocasião, porque o ritmo diário e endiabrado de trabalho não mo permitem. No entanto, pelo significado e pela profundidade da ocorrência, partilho um registo para quem quiser ler e refletir.

O dia de ontem amanheceu agitado também na minha casa. Em Santa Maria Maior, ainda longe dos fogos ditos ativos, e entre a pressão das notícias e a gestão familiar, eis que me deparei com uma situação insólita. A cadela do meu filho amanheceu agitada e durante todo o dia protestava de um lado para o outro, numa inquietação singular que todos atribuíram ao calor intenso. Nem os mimos, nem as passeatas pelo quintal, nem a água fresca, sempre substituída, conseguiam apaziguar o lume que ia dentro deste animal. Estava a ficar doente desta onda de calor, pensei. Natural. Mais admirada fiquei ao constatar que, nem à voz dócil do dono, se ela queria obedecer, o que  nunca aconteceu. Rejeitava convites para passeios, brincadeiras e outros desvelos.

Para acalmar a cadela, trouxemo-la para a cozinha e até para a sala. À hora de almoço, deitada sobre os azulejos do chão da cozinha, pasme-se, gemia… Ninguém entendia nada. A dada altura, veio-me ao pensamento: o que estará a intuir esta cadela? Quererá dizer-nos alguma coisa? Terei de chamar o veterinário?

Pelas 16h00, estava eu a escrever para o FN o balanço feito pelo presidente do Governo Regional, a defender que se estava a entrar numa fase de maior acalmia, ao mesmo tempo que nos sentíamos paradoxalmente mergulhados num verdadeiro caldeirão, em que não batia nada a bota com a perdigota. Quando digitava os números e o balanço do presidente, a nossa cadela desafiava-me com o olhar esgazeado, balouçava-se inquieta de um lado para o outro, de tal maneira que o meu filho já estava exasperado.

O tempo passou depressa. Pelas 18h30, as previsões oficiais de calma redundaram num verdadeiro inferno de chamas e fumo assustador a cobrir o anfiteatro do Funchal, ao mesmo tempo que os meus vizinhos fugiam para a Avenida do Mar. Da minha varanda, a nuvem de fogo e fumo que descia perigosamente para o centro da cidade, o barulho de explosões de botijas de gás e o corrupio constante das sirenes dos bombeiros, mostraram claramente as cartas de um jogo até então oculto. O fogo estava descontrolado e ia mesmo fustigar o centro da cidade, com o perigo acrescido de faúlhas à deriva para qualquer lado. Só aqui percebi, ao olhar para a nossa cadela, o que nos estava a avisar durante todo o dia.

Perante o terror, peguei nos filhos e na cadela, meti-me no carro para rumar à Avenida do Mar, mas o trânsito engarrafado não mo permitia. E a cadela sempre em agitação no carro e sem vontade sequer de beber água. Desviei a viatura para São Gonçalo e, dos Louros até ao miradouro do Restaurante Zarcos, levei cerca de duas horas, no pára/arranca.  Juntamente com dezenas de madeirenses, contemplava, condoída, uma cidade linda a ser engolida, em algumas zonas, pelas chamas. Na estrada, uma fila interminável de carros tentava chegar à Cancela, porque a via rápida tinha sido encerrada. Ali permaneci com a família até às 21h30 horas, no átrio do restaurante que estava encerrado. E a cadela sempre inquieta, sem apetite e sem sede, a querer rebentar a trela como que para poder respirar por esse mundo fora.

No telemóvel e na rádio da viatura, fomos acompanhando as notícias. Após os focos de incêndio em alguns pontos da cidade, tudo parecia caminhar para o controlo efetivo da situação, apesar de estar já descrente de certos balanços.

Regressámos a casa. Seguimos uma viatura da Proteção Civil e entrámos a toda a velocidade na Estrada Conde Carvalhal, ao mesmo tempo que, à esquerda, a fila de carros não terminava, rumo à Cancela. Aguardámos pelo evoluir dos acontecimentos, ao mesmo tempo que editávamos as notícias. O meu filho foi adormecer, literalmente, a cadela e, qual um bebé que vive connosco há dois anos, deixou-se vencer pela exaustão e adormeceu. Nós fizemos a vigília habitual noturna das famílias num cenário de incerteza.

Hoje, logo pela manhã, a cadela retomou o seu perfil habitual: serena, doce, adepta do seu passeio e a contentar-se com os mimos da praxe. No seu habitual espaço, nem precisa de mais atenções e faz as suas sonecas de rotina. Como explicar esta metamorfose? Coincidência ou não, o fogo no Funchal foi estancado, a temperatura baixou, o vento parou de soprar e os incêndios ainda preocupam para os lados da Camacha e Calheta.

Perante tudo isto, quando olho para esta cadela, um turbilhão de emoções invade-me. Ela sim, mais esperta que o mundo dos governantes, a intuir o avanço perigoso da tragédia, desde a madrugada de ontem. Eu sim, leiga e cega, sempre a aprender tudo de novo. Como, então, não amar profundamente estes seres vivos? Mas não só. Urge também parar para descodificar a mensagem que nos querem transmitir. Ficou a lição.