Há 16 anos, em 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, os líderes europeus foram confrontados com a entrada no governo austríaco, liderado pelo partido conservador, do denominado Partido da Liberdade (FPO), uma formação de extrema-direita. Na altura, o Conselho Europeu decretou sanções diplomáticas contra Viena, muito por pressão da França, sujeitando a Áustria a uma espécie de quarentena. A declaração da presidência de então, reiterava solenemente a obrigação dos partidos políticos democráticos de recusar quaisquer concessões às forças políticas que instigam a intolerância e o preconceito. O castigo, contudo, não durou muito nem teve grande resultado, uma vez que as cedências e os compromissos que então se achava inadmissíveis se foram entretanto multiplicando e acabaram por envolver os parceiros mais improváveis nos mais inesperados lugares.
Entretanto, em Maio passado, a Áustria esteve muito perto de eleger Norbert Hofer, o candidato do FPO, que seria o primeiro chefe de Estado europeu de extrema-direita, após a II Guerra Mundial. Hofer acabou por perder a eleição para o ex-líder do Partido Os Verdes, Alexander van der Bellen por uma escassa margem: cerca de 31 mil votos.
Esta eleição confirmou uma realidade comum a cada vez mais países europeus: o enfraquecimento crescente, nalguns casos até a implosão, dos partidos democráticos de centro-direita e centro-esquerda. É que, os dois partidos da “grande coligação” que governa a Áustria, os sociais-democratas e os conservadores, viram os respectivos candidatos completamente cilindrados, reduzidos a cerca de 11% cada um na primeira volta desta eleição. E, o mais tardar em 2018, haverá eleições legislativas que, se ocorressem hoje, seriam ganhas pelo partido de Hofer.
Refira-se que, no passado recente, os dois partidos do sistema não hesitaram em aceitar o apoio da extrema-direita no Governo ou no Parlamento. Aliás, Hofer é o terceiro vice-presidente do Parlamento. E ainda hoje há acordos políticos entre o seu partido e os conservadores ou os sociais-democratas, a nível regional. E os referidos partidos do sistema, desde que governam a Áustria, a partir da II Guerra, têm pautado a sua actuação pela partilha equitativa de empregos públicos entre os seus militantes, ao mesmo tempo que manifestam incapacidade para prestar sequer atenção aos problemas dos seus habitantes.
Não admira por isso que Wolfgang Munchau, um conceituado articulista alemão, editor do “ Financial Times”, considere que “os eleitores estão em franca rebelião contra o que nós, na Europa, chamamos grande coligação”. Em artigo recente intitulado “As grandes coligações da Europa permitiram o fortalecimento dos extremos”, Munchau escreveu: “Juntos, eles costumavam ter maiorias de 80% ou mais. Mas as suas maiorias têm sido cada vez menores e, em alguns casos, desapareceram. Na Alemanha, uma sondagem recente coloca a coligação de governo de Angela Merkel, formada por democratas-cristãos e sociais-democratas, nos 50,5%, o que ainda é uma pequena maioria, mas uma maioria que os dois estão em risco de perder nas eleições gerais em 2017”. E acrescentou: “ o principal beneficiário da actual grande coligação, é a Alternative fur Deutschland, o partido de direita anti-imigração. A sua base de apoio aumentou de 4,7% para 13,5%, de acordo com uma sondagem recente”. E concluía que “se houver outra grande coligação após as eleições é muito possível que seja a Srª. Merkel a liderá-la; seria o seu quarto mandato. Muitos iriam comemorar isso como uma escolha pragmática. Mas, a meu ver, seria o pior resultado concebível porque abriria o caminho da AfD para o poder absoluto em algum momento da próxima década. Na Áustria, o FPO poderá lá chegar dentro de dois anos”.
A propósito desta atracção pelo centro por parte dos até agora grandes blocos partidários (democratas-cristãos e sociais-democratas), tendo por base o exemplo alemão, Munchau é peremptório:” Se lermos os programas dos dois partidos, vamos encontrar diferenças subtis nas políticas sociais e económicas; na prática, os dois são indistinguíveis”. Uma opinião que é partilhada pelo deputado do PS francês Pascal Cherki, um dos líderes dos “frondeurs” (revoltados contra o presidente, François Hollande e o primeiro-ministro, Manuel Valls) que em declarações recentes ao semanário “Expresso” afirmou textualmente: “ os dirigentes sociais-democratas estão hoje mais à direita do que o Papa. Hoje em França ainda estamos no passado da social-democracia arcaica do tempo de Blair e de Schroeder”.
Este fenómeno, da crescente ascensão eleitoral da extrema-direita, verifica-se um pouco por praticamente a totalidade dos países europeus, com excepção da Península Ibérica. Basta ter presente os resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu, em que os partidos de extrema-direita ficaram em primeiro lugar, com mais de 25% dos votos, na França, na Grã-Bretanha e na Dinamarca, tendo subido muito de votação na Áustria e na Grécia. E posteriormente, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhou a primeira volta das eleições regionais. E hoje, partidos da mesma natureza, partilham o poder na Holanda, na Hungria e na Polónia.
O avanço da extrema-direita faz-se também sentir na Escandinávia. Na pátria por excelência do “modelo nórdico”, os “Democratas Suecos”, partido fundado em 1988 pela fusão de diversos grupos neonazistas, foi o terceiro partido mais votado nas eleições legislativas de 2014, com 12,8% dos votos. E na Dinamarca e na Finlândia, dois partidos criados em 1995 alcançaram resultados ainda mais surpreendentes. O “Partido Popular Dinamarquês”, na sequência das eleições legislativas de 2015, obteve a maioria no governo e na Finlândia, “Os Verdadeiros Finlandeses” ascenderam também ao governo. Por fim, na Noruega, o “Partido do Progresso” chegou também pela primeira vez ao governo, com posicionamentos políticos igualmente reaccionários.
Pior ainda é o que se passa em alguns países do antigo bloco do leste europeu. Na Hungria, por exemplo, Viktor Orbán, foi eleito com duas maiorias absolutas seguidas, mas despreza a chamada democracia liberal, que acusa de fraca e falida. Ao invés propõe-se criar um modelo que se inspira em Singapura, na Turquia e na Rússia, tudo estados que, como é sabido, se recomendam! Orbán chegou, de resto, ao ponto de dizer que “todos os terroristas são, basicamente, migrantes”. E na Polónia, até o insuspeito Lech Walesa e outros dois ex-presidentes, apresentaram recentemente uma carta aberta denunciando o risco para a democracia dos actos do novo governo liderado pelo partido “Lei e Justiça”, que desde Outubro já aprovou leis para enfraquecer o tribunal constitucional e aumentar o controlo estatal nos media.
Não espanta que, perante este quadro, a jornalista Graça Franco, directora de informação da Rádio Renascença tenha publicado um texto, sob o título “Extrema-direita: o perigo adormecido permanece”, em que conclui: “Nos anos 30 também foi assim. Escalando na crise económica, com o apoio do «povo» e legitimados pelo voto. Faz medo, muito medo”.
A tudo isto a União Europeia assiste mais ou menos impávida, manifestamente incapaz de saber o que fazer. Como, aliás, se tem visto também com o drama dos refugiados. Em que uns países fecham fronteiras, constroem muros e colocam arame farpado e outros apropriam-se dos próprios bens dos imigrantes, completamente indiferentes à sua sorte e ao seu sofrimento. E como se não bastasse o elevado número de vidas humanas perdidas na travessia do mediterrâneo, muitos dos que escapam à morte vêem-se agora forçados a prostituir-se por valores tão baixos quanto dois euros.
As suas preocupações são outras – a aplicação ou não de sanções a Portugal. Ao mesmo tempo que premiou a França com mais um ano e beneficiou a Espanha com um teste/programa que lhe permitiu resgatar a banca sem que a isso se chamasse sequer resgate à economia. Esta política de dois pesos e duas medidas aplica-se também à Alemanha, cujo excedente comercial não só não está a ser combatido, como impõem os tratados e recomendam as instituições, como está a agravar-se a olhos vistos. Por isso, impõe-se a pergunta: alguém vai multar a Alemanha da srª. Merkel por estar com a sua política comercial a desequilibrar de forma injusta e grave a economia de toda a Zona Euro? Obviamente que não!
Face à manifesta incapacidade da União Europeia em dar resposta à crise económica e financeira; à crise dos refugiados; à crise identitária; à crise na Ucrânia, obviamente que não surpreende que o eurocepticismo esteja em crescendo na União Europeia, em particular em países como a Grécia, a França, o Reino Unido e a Espanha.
Entretanto, daqui a escassos dias, a Europa terá uma semana que poderá determinar decisivamente o seu próprio futuro. Não só com a 2ª volta das eleições municipais italianas, em que o movimento antipolítica, o 5 Estrelas, aparece favorito a conquistar cidades como Roma ou Turim, mas também em Espanha com a repetição das eleições gerais que podem culminar em mais um impasse, num país a braços com 20% de desemprego. Mas, sobretudo com o referendo britânico. Cujas últimas sondagens apontam para a possibilidade de vitória do Brexit, com o Reino Unido a sair da União Europeia. Que a verificar-se conduziria inevitavelmente a um movimento secessionista que se estenderia a vários territórios, de modo particular à Escócia, à Catalunha e ao País Basco. Mas que a avaliar por notícias recentes poderia desencadear movimentos similares noutros países, que vão da fundadora Holanda aos últimos a chegar do leste.
Tudo se complicará ainda mais se em Novembro, Donald Trump conseguir ascender à presidência dos Estados Unidos. Alguém que o académico Robert Kagan, particularmente respeitado pelo campo conservador, descreve nestes termos: “É assim que o fascismo chega à América, não com botas de cano nem continências, mas com um vendedor ambulante televisivo, um bilionário falsificado, um egomaníaco primário a abrir a torneira dos ressentimentos e inseguranças populares, e com todo um partido nacional – por ambição ou por lealdade cega, ou simplesmente por medo – alinhado atrás dele”.
Não é por isso exagerado concluir que “o ovo da serpente não foi totalmente esmagado”.
*por opção, este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.