Entre a estupefacção e a náusea

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Foi entre a estupefacção e a náusea que anteontem, 17 de Abril, através de um canal de televisão brasileiro, assisti, a espaços, à votação nominal, na Câmara dos Deputados, do relatório oriundo da Comissão que apreciou o pedido de destituição – impeachment, adoptado pelos brasileiros do anglo-saxónico – da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Comecei, incrédulo, por pensar que um qualquer grupo de teatro amador glosava uma sessão plenária no parlamento brasileiro, ensaiando a caricatura e a ridicularização dos seus membros, mas, rapidamente, percebi que estava sentado, desprevenido, a ver, em directo, uma verdadeira e significante sessão parlamentar que, na sua ordem de trabalhos tinha, “só”, a responsabilizante tarefa de aprovar, ou não, a destituição da Presidente do Brasil. Impunha-se por isso, julgava eu, ingénuo, que seriam exibidas todas as mais normais regras da democracia parlamentar em uso, que a sobriedade seria a nota dominante no comportamento dos protagonistas e que o indispensável decoro e a exigível decência marcariam tão escaldante momento da democracia e da vida cívica no Brasil. Qual quê… Um amontoado de deputados e deputadas, em torno do microfone onde cada um deles e delas debitava a sua sentença política face à destituição requerida, exibiam, de forma alarve, os rostos da alegre vingança que os motivava e o prazer de serem parte de tão medonho espectáculo onde, nem sequer o speaker – agora sou eu a dar uma de inglês/americano – atarefado a dar uma imagem de tédio, de “tem de ser…”, de “ o que me tocou…”, chamava pelos seus pares com uma indisfarçável entoação de quem anuncia o próximo assalto num combate de luta- livre, mas compreendendo, sem reagir, o estado em que se encontrava o “cenário” da democracia, a falta de cumprimento das “marcações” e ignorando ostensivamente o ambiente de desafio hostil às mais elementares regras daa convivência cívica e democrática. No final de cada exercício de vontade dos parlamentares participantes, precedida de breves e pungentes declarações de voto, – “pela minha família”, “pela comunidade evangélica de…”, “pelo meu Paraná querido”, “pelo meu Brasil”, “pela gente, que me escolheu”, “pela minha Pátria”… o “meu voto é pelo impeachment, é, portanto, “sim”; alguns, poucos, como se viu, foram “não”-, o speaker, dizia, repetia o nome do representante eleito, o partido a que pertencia, a circunscrição de que era oriundo, anunciava os números até àquele momento e passava ao “orador” seguinte. E assim terá sido até tarde; não vi tudo e, do que vi, como já se percebeu, não gostei.

E não tem nada a ver, esta minha posição, com o que neste caso está em jogo – não escondo, porém, que, enquanto observador, sou claramente contra todo este processo de tentativa, – ainda falta o Senado, veremos -, de destituição da Presidente do Brasil. Não me parece politicamente sério, está mal explicado, é de constitucionalidade duvidosa, contou com a ingerência abusiva e esdrúxula da justiça brasileira, é claramente classista e visa objectivos pouco, ou nada, compatíveis com o normal funcionamento da democracia e, por estas razões, não podia ser senão contra – tem sobretudo a ver com o que se exige de uma democracia para que, sem pretextos, quem a vive, quem a paga, quem a alimenta com o seu interesse pela coisa pública, quem a quer ver dignificada honrando os sacrifícios de todos, os cidadãos, em suma, nela se reconheçam e continuem a apostar na sua eficiência, na sua eficácia, no seu prestígio e seriedade para corresponderem ao que dela esperam e a tudo o que legitimamente anseiam.

Dir-se-á que Brasil é Brasil; que o Brasil tem estas idiossincrasias; que o brasileiro alimenta esta maneira de ser por temperamento, por história, por cultura, por identidade; dir-se-á tudo o que possa pretender desculpar o indesculpável e, entretanto, o que se me afigura ser mais importante, a democracia vai sendo corroída pelos maus exemplos, pelo despropósito, pela negligência, pela caricatura, pelo ridículo, pelo avacalhamento.

Os inimigos da democracia, os que na liberdade e na justiça social veem o demo, vivem encantados com a multiplicação de episódios como o descrito, sentem que a fogueira que se vai ateando, que vai ardendo consistentemente e que, crescendo, incinera os grandes valores civilizacionais da humanidade.

Os movimentos e partidos políticos de extrema-direita, as associações de duvidosos objectivos e de carácter intolerante, preocupantemente por toda a parte, com as múltiplas formas de se promoverem e de se propagandearem, deram já provas da sua habilidade e capacidade para, servindo-se da democracia, promoverem a sua destruição; é isso que me preocupa em episódios como o brasileiro, ou outros, mas com a mesma tonalidade, já abundantemente noticiados, e ocorridos algures por esse mundo fora que, descurando o essencial, objectivamente, fragilizam, condenando-as, as ideias de democracia e de liberdade em que, acredito, uma esmagadora maioria de seres humanos quer continuar a viver.

Diz um provérbio chinês que “quando o sábio aponta para as estrelas, o idiota olha para o dedo”; é bom que nos concentremos nas “estrelas” e que mantenhamos com elas o espírito iluminado ao serviço de causas que nos enobreçam, nos unam e nos coloquem solidários e coesos a defender os valores que intransigentemente queremos manter; se não resistirmos à tentação de fixar o dedo, acabará por ser ele, esse dedo, apontado a nós, autoritário e feroz, que ditará o modo como, sem prazo conhecido, estaremos condenados a obedecer.