Gado não trava incêndios na floresta da Madeira

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Criadores de gado encontram-se domingo, entre as 11 e as 16 horas na Bica da Cana, Paul da Serra. Defendem o regresso do pastoreio às serras da Madeira como forma de controlar a vegetação e prevenção dos fogos florestais. Raimundo Quintal, que ontem lançou um alerta, refuta completamente esta ideia. Diz ao ‘Funchal Notícias’ que os partidos não devem ceder a pressões eleitorais.

Com o apoio de números e factos históricos, o geógrafo e investigador na área do ordenamento do território diz que “é completamente mentira que o pastoreio contribua para evitar ou minimizar fogos. Os maiores incêndios na ilha da Madeira, desde o início do século XIX, ocorreram quando as serras estavam infestadas de ovelhas, cabras e porcos”.

Também para o mesmo dia e local, está marcado, a partir das 9 horas, A Festa do Mundo Rural, organizada pelo CDS, onde, para além do convívio estarão em debate problemas dos agricultores. Raimundo Quintal refere a propósito que a questão do gado na serra “é muito séria”. Espera por isso que não “sejam tomadas decisões em ambiente de pressão eleitoral”. E acrescenta: “Outros candidatos, de outras forças políticas, têm vindo, por enquanto em privado, a defender o pastoreio nas serras da Madeira”.

Na sua perspetiva, importa conhecer o passado: “Os períodos em que o recuo do coberto florestal foi travado e superado por novas plantações, resultaram sempre de medidas fortes e consistentes dos agentes políticos” e relembra o papel do Conselheiro José Silvestre Ribeiro, governador civil entre 1846 e 1852, que realizou uma “obra extraordinária em prol da floresta e do sistema ecológico global ilha”.

Conhecedor das tragédias que ocorreram na Madeira: outubro de 1803 (a maior tragédia da história ilha), 30 de outubro de 1815, 24 de outubro de 1842 e de 17 a 20 de novembro de 1848, “José Silvestre Ribeiro tinha perfeita consciência de que na expansão do coberto florestal residia a única forma de travar a erosão, minimizar o risco de cheias e aumentar os caudais das fontes”.

Quanto aos incêndios o geógrafo opina que, “ao contrário do que é voz corrente na Madeira, também ocorreram fogos florestais no tempo em que havia grande procura de lenhas e gado solto pelas serras. Por exemplo, em 1919 o lume correu pela ilha entre 18 de agosto e 3 de setembro. Esses incêndios florestais de grande dimensão motivaram múltiplas notícias e artigos de opinião no Diário de Notícias”. Defende por isso que o retorno das formações vegetais indígenas às terras altas da cordilheira central é crucial para o desenvolvimento sustentável da Madeira.

Raimundo Quintal(1)O geógrafo relembra que “desde o início da atividade da Circunscrição Florestal do Funchal, a 26 de abril de 1952, foi em agosto de 1976 que o lume destruiu a maior área florestal. Segundo dados da Direção Regional de Florestas, arderam 15 000 ha de florestas e morreram 4 000 cabeças de gado. A reportagem do Diário de Notícias (Madeira), de 13 de agosto, informava que, pela primeira vez na ilha, um Aviocar tinha feito um reconhecimento aéreo, tendo detetado incêndios isolados nos seguintes locais: Curral dos Romeiros; Caminho dos Pretos; Terreiro da Luta; Pico Alto; Montado dos Lojas (quase todo destruído); Montado do Bom Sucesso (todo queimado); Ribeira das Cales; Avista Navios (Montado do Barreiro); Sítio das Furnas e Lamaceiros”.

O processo de retirada do gado das serras teve início em 1994, quando a Câmara Municipal (CMF) criou o Parque Ecológico do Funchal na zona montanhosa sobranceira à cidade. “A vasta propriedade concelhia, com uma área de 10 km2, tinha estado durante muito tempo sujeita a um intenso pastoreio, na parte mais alta, e à expansão descontrolada de eucaliptos e acácias nas terras mais baixas”, explica.

Com a implementação do projeto, em 1995 foram retiradas 1300 ovelhas e cabras e em 1996 teve início o programa de reflorestação. Raimundo Quintal enumera os objetivos: recuperar as formações vegetais primitivas, minimizar as condições de propagação de fogos, reduzir a erosão e diminuir os efeitos catastróficos das cheias, aumentar a infiltração das águas e reforçar as nascentes.

Os interesses dos criadores gado colidiram na época com os objetivos da Câmara do Funchal. O investigador relembra que foi então celebrado um protocolo com a Cooperativa dos Criadores de Gado do Monte, estabelecendo-se que apascentariam 250 ovelhas, numa área delimitada, perto da Ribeira das Cales, onde tinham um ovil. “Quem cuidava dos animais era uma pessoa contratada pela referida cooperativa. Os criadores não eram pastores. O Parque Ecológico disponibilizou um espaço onde podiam pôr à venda produtos resultantes da criação do gado, como queijo e artesanato, mas nunca o fizeram. Passados cerca de sete anos, entregaram o terreno à Câmara do Funchal”.

Recorda também o processo de retirada do gado das serras altas de Santo António, São Roque e Areeiro, em 2003. “A Secretaria Regional dos Recursos Naturais acordou com três cooperativas que no perímetro florestal do Poiso poderiam apascentar 600 cabeças de gado, com apoio nos ovis do Chão das Feiteiras, do Chão das Aboboreiras e da Ribeira dos Boieiros. Quem diariamente acompanha os animais não são os criadores, mas trabalhadores pagos pela Secretaria, que custam à Região cerca de 120 mil euros por ano”.

A recuperação do coberto florestal, para além dos trabalhos realizados pela Secretaria Regional dos Recursos Naturais, tem contado com o trabalho de muitos voluntários da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal (AAPEF), que ao longo da última década têm plantado milhares de árvores.

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Em outubro de 2001 a  AAPEF, atualmente presidida por Raimundo Quintal, iniciou a plantação de espécies indígenas na zona mais alta do parque, na área do Pico Areeiro, entre os 1700 e os 1800 metros de altitude. “O risco era grande”, diz a propósito, “mas maior era o desafio de criar um oásis num deserto de montanha. Ali a autorregeneração era praticamente impossível porque todo o coberto vegetal tinha desaparecido e nalguns espaços já nem solo havia. Onde a rocha madre aflorava só com a criação dum novo solo em cada caldeira seria possível instalar as plantas pioneiras para uma nova sucessão biológica”.

Em outubro 2001, nasceu o projeto Oásis num Deserto de Montanha. “Desde então os voluntários da AAPEF trabalham na plantação e manutenção de espécies adequadas às características daquele ecossistema”, acrescenta.

Apesar de todo o esforço já realizado, a recuperação da biodiversidade no Pico do Areeiro e em todo o maciço montanhoso central será demorada e “exigirá um forte empenhamento do governo regional, das câmaras municipais, das associações ambientalistas e dos proprietários dos terrenos”, comenta o geógrafo.

A propósito do grande incêndio que aconteceu em agosto de 2010 que destruiu muitas plantações, afirma que não começou “nas áreas onde agora pretendem ter o gado, mas nas zonas de eucalipto e resultou de fogo posto. O incêndio galgou a encosta e com rajadas de 100 km por hora, não há quem o combata, em nenhum lugar do mundo”.

Faz referência a dados da Direção Regional de Florestas: “O fogo consumiu então 8.900 ha de coberto vegetal, o que corresponde a 11% da área da ilha da Madeira. Esta catástrofe assumiu particular gravidade, pela perda de biodiversidade na formação arbustiva do último andar fitoclimático e pela dimensão da termoclastia das rochas na  cordilheira central, agravando significativamente a vulnerabilidade nas cabeceiras das ribeiras relativamente à aluvião de 20 de fevereiro de 2010”.

Perante a questão da presença ou não do gado na serra e das dúvidas que se levantam, aconselha a visita de uma equipa independente às ilhas Desertas. “O Parque Natural iniciou um processo de abate das cabras, que acabou sendo abandonado. O abandono do programa resultou num retrocesso da recuperação da biodiversidade. A população de cabras tem crescido nos últimos anos, com consequências visíveis no recuo da vegetação”.

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Os criadores de gado falam em hipóteses de trabalho e referem como exemplo o projeto Self-Prevention, implementado em território transmontano entre Portugal e Espanha, que promove a criação de gado em zonas de montanha, para prevenção de fogos florestais. Raimundo Quintal conhece p projeto e comenta: “É um programa para um território completamente diferente do nosso e é muito cedo para extrair conclusões”.

O geógrafo não é radicalmente contra a presença de gado na montanha e defende: “Se querem fazer um pastoreio, não é nos píncaros da ilha, mas na zona onde começam os fogos, ou seja na área de transição entre as habitações e a floresta de pinheiros bravos, acácias e eucaliptos”.

Diz que a desejável redução dos focos de incêndio “só acontecerá quando as matas de árvores exóticas infestantes e os matagais forem limpos periodicamente ou substituídos por prados. A biomassa poderá ser utilizada na produção de eletricidade e os prados poderão ser valorizados com a apascentação sustentável de gado ovino”.

Nesses prados vedados “seria aconselhável desenvolver núcleos de castanheiros e nogueiras, árvores vocacionadas para a produção de frutos secos. A gestão dessas explorações mistas deve ser da responsabilidade de associações de vizinhos, o que implica na sua perspetiva “uma mudança de mentalidades”.

A experiência no trabalho de campo “ensinou-nos que, mesmo com escassos recursos financeiros, é possível ajudar as montanhas a cobrirem-se com o manto verde primitivo”. Para atingir esse objetivo, Raimundo Quintal defende que os novos projetos de repovoamento vegetal deverão apostar “exclusivamente na plantação de espécies endémicas e indígenas já testadas com sucesso”, movendo o mínimo de solo e não alterando a topografia.

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