
Os agentes culturais madeirenses, em termos gerais, estão a viver um período que pode ser caracterizado como uma verdadeira travessia do deserto. A crise que verga os portugueses em geral e os madeirenses ainda mais, ajoujados como estão pelo peso da irresponsabilidade financeira e pela megalomania de quem os governou, ganha expressão, por um lado, nos contorcionismos que muitos têm que fazer para tentar captar a atenção de um público que hoje tem, maioritariamente, os bolsos vazios; e por outro, na indisponibilidade para responder a questões dos jornalistas, que implicam o assumir-se uma opinião e uma visão política da cultura, neste momento de viragem que a sociedade madeirense atravessa.
O Funchal Notícias tentou realizar uma auscultação de intervenientes em diversas áreas culturais, sobre o que esperam do futuro. Tentou ouvir os seus legítimos anseios e propostas. E perceber melhor qual a leitura que fazem dum momento em que a situação política, necessariamente, tem de mudar. E mudar para melhor, espera-se.
Mas, de um grupo de intelectuais e artistas seleccionados, aos quais enviámos o questionário que se pode encontrar abaixo, apenas dois nos responderam afirmativamente: o poeta Carlos Fino e o actor Élvio Camacho. Outros responderam-nos alegando mera “indisponibilidade”, outros, mais sinceros, dando a entender claramente que temem pronunciar-se sobre matéria política. Outros ainda nem sequer responderam às solicitações que lhes deixámos. Não deram qualquer justificação, qualquer resposta.
Estão, claro, no seu pleno direito. Mas a sua atitude reflecte o medo que ainda subsiste entre os responsáveis culturais, em relação às disposições de humor de quem manda (ou mandará) na política. A prudência acaba, assim, por transmutar-se na opção de não ter opinião.
Face a esta realidade, optámos por colocar, na íntegra, as opiniões das duas pessoas que se dignaram responder-nos ao questionário que lhes apresentámos. Porque, se bem que divergentes em alguns pontos, são, pela sua frontalidade, bem elucidativas. Aqui ficam, para registo.
Funchal Notícias – Acha provável a vitória de um PSD encabeçado por Miguel Albuquerque nas próximas legislativas regionais, sozinho ou coligado com o CDS-PP?
Carlos Fino – Não só acho provável, como me parece inevitável, considerando a inépcia da oposição, particularmente do PS, que foi incapaz de se abrir para oferecer uma alternativa credível de poder em que se possam rever os cidadãos que não estavam com o regime.
Élvio Camacho – A julgar pelo que tem sido o sentido de voto dos eleitores nos últimos actos eleitorais na RAM, não me parece. Sou ingénuo, para o que sonho, sou-o sempre. Coligado com o CDS-PP Madeira, antes das eleições, é que me ainda me parece ter menos sentido, depois do que tem sido a batalha de José Manuel Rodrigues a tudo e muito com o que não se identifica do que foi e é o PPD-PSD Madeira. Acho provável a vitória de qualquer líder que acuse a absoluta necessidade de mudança e que seja capaz de fazer ver que na administração pública do Governo Regional têm de estar os que não sirvam o clientelismo instalado nem mimetizem os piores tiques de pequeno poder do grande poder. Seguir um rumo aprovado pelos eleitores não é seguidismo ao que depois de pior pode emanar de quem abusa do voto que mereceu. Virgílio Pereira, dentro da máquin partidária PSD, foi o primeiro, que me lembre, a dizer que Jardim não lhe dava puxões de orelhas. Albuquerque também foi corajoso neste aspecto. Acho então provável a vitória de qualquer um que não tenha medo e que mereça aquele momento tão bonito que é irmos meter uma esperança qualquer dentro das urnas. Mas não tivemos nós líderes dos diferentes partidos da oposição mais que corajosos? Estou certo que sim, mas cansámo-nos, por mais admiração que se tenha pela sua luta, dos mesmos rostos, até na oposição.
FN- Se sim, parece-lhe que a liderança de Albuquerque mudará alguma coisa na situação difícil que a Cultura vem atravessando na Região nos últimos anos?
C. F. – Espero que sim.
E. C. – Sei que seria para responder só se achasse provável a vitória de Miguel Albuquerque, e não foi o caso. Ainda assim, a minha resposta seria a de que sou suficientemente ingénuo pra acreditar que mudará qualquer coisa, sim. Qualquer que seja o vencedor destas eleições que não venha a mudar o nosso moribundo estado cultural, perderá as próximas. Mas conto-lhe (vale o que vale) algo que já manifestei publicamente como um sinal do que não devia ser política cultural e que acontecia na Câmara Municipal do Funchal. Toda a gene sabe que sempre me agarrei, e não só metaforicamente, ao facto de Tozé Martinho cá ter vindo com algumas das suas produções, por ajuste directo da edilidade, como algo negativo (o ajuste directo, atenção, e só para este produtor teatral). Por acaso, até é um facto que aproveitei sempre, também com ironia, para justificar como a actividade teatral, mesmo a, digamos, comercial, tem custos gigantes. Uma ilha que acolha, com diferentes critérios, através da sua política cultural, um La Féria, mas também um Teatro da Cornucópia, os Artistas Unidos, a Mala Voadora, o TEP, Tozé Martinho (não o descriminaria, claro), etc. É este o meu sonho e para isto não precisamos de ajustes directos, mas de política cultural com uma – fundamental – articulação entre autarquias, parceiros criativos locais, e governo regional e nacional, mais nada.
FN – Porquê?
C.F. – Porque Miguel Albuquerque, ao contrário do seu antecessor na liderança do PSD, que parecia fazer questão de nivelar por baixo, demonstrou sempre interesse pela cultura, quer participando em eventos de natureza cultural, quer promovendo realizações culturais importantes durante os seus mandatos como presidente da Câmara Municipal do Funchal.
E.C. – Porque já não há medo. Porque o “´tá caladinho meu filho, que senão eles vão tramar-te” quase geneticamente herdado dos nossos pais amedrontados começa a deixar de ser uma doença crónica. Curámo-nos através do que nos aconteceu. Pobreza, desemprego que nos atingiu, esperanças roubadas deram-nos ao menos isto, a cura para a ataraxia provocada pelo medo. Acrescento, porque a desilusão é gigante, é absoluta, porque precisamos todos duma malga de sopa, de abrigo, de saúde, de educação, é certo, mas se não precisarmos de arte, das artes, do amor, não só do amor às artes, de que nos serve pão, saúde e educação? Será tão complexo entendê-lo? Imagine se estivesse para aqui a responder-lhe com medo do que pensará este ou aquele do que lhe digo? Isso acabou e não tenho imunidade. O nosso ânimo deixou-se de baboseiras. E podemos sempre ser tão elegantes no não termos medo. É essencial a elegância, é essencial o não ter medo.
FN- Pelo contrário, acha que será o PS, coligado com os partidos que já anunciou, o mais provável vencedor?
C.F. – A coligação do PS com o PTP e quejandos, além de ridícula e contranatura, não demonstra nenhuma ambição, a não ser, talvez, a de os seus dirigentes manterem os seus lugarzinhos institucionais na ALM. É a melhor solução para garantir mais uma maioria absoluta ao PSD.
E.C. – Porque não também? Ainda que me pareça já vir tão tarde qualquer coligação – e pensar que houve tanto tempo para a engendrar. Mas Carlos Pereira seria o ser em que votaria caso tal coligação (conforme o que visse que ela fosse) já estivesse formada. Nós temo partidos com muita dívida de gratidão ao bom nome do que foi o partido A ou B. Parece que a rotatividade, que se devia praticar de bom ânimo, é votar quem deu o máximo de si, por uma causa, ao degredo. Parece que a limitação de mandatos é um atestado de incompetência quando é tão só um sinal de inteligência e de que os humanos têm limites. Isto tem feito com que muitos líderes se apeguem – até contra sua vontade – aos cargos. Olhe, o que eu gostava tanto, era que não existisse uma maioria absoluta de nenhum partido e que (assim, sim) se dialogassem as partes até à formação dum Governo de Gente. Não sou comunista e gostava tanto que ganhasse Edgar Silva (isto também e só se ele já não estivesse há tanto tempo como líder da sua luta). Mas se penso em tudo o que foi insulto e ataques e contra-ataques – aos contra-ataques percebo pois um gajo não é de ferro – eu não votaria em ninguém. Aquilo de me abter e ir votar, mas que se praticasse sentiria ser o meu fim e não responderia às suas perguntas, a nenhuma. Há sempre aquela bela vitória, em 2001, de Jorge Sampaio, nas Presidenciais, aqui na Madeira. Uma vitória que atiro aos olhos de quem me fere dizendo que os madeirenses não pensam. Há sempre o que aconteceu, há mais de um ano, nas Autárquicas. Para e pelo que lutaram, tantos anos, Guida Vieira, Jacinto Serrão, Emanuel Jardim Fernandes e tantos mais? Não pode ter sido em vão e muito menos o pode ter sido para cilindrar qualquer possibilidade de aparecerem novos protagonistas em cada um dos partidos ou movimentos de ideais.

FN – E se fosse, parece-lhe que algo mudaria, sob liderança socialista, na situação cultural da Região, onde agentes culturais continuam a lutar em circunstâncias altamente desfavoráveis, e pessoas muito válidas na área cultural a ser desprezadas?
C.F. – Sob liderança socialista, talvez. Se a liderança fosse mesmo socialista, ou seja, aberta e inclusiva, ao invés de se manter fechada sobre si própria e a gerir um metro quadrado de influência.
E.C. – Não me parece, com pena o digo e particularmente agastado que estou neste aspecto, com forte conhecimento de causa – racional e emocional – de tal desprezo. Já fiz a minha moção, já a publiquei no facebook, já escrevi todos os memorandos de contributos possíveis (pouco aconteceu, mas tenho esperança, sobretudo em mim). Nós não somos, por mais que digam, prioridade enre as prioridades, somos um tema que se aflora como essencial antes das eleições e que depois se perde no éter da vidinha a que nos reduzimos cheios de medo. Levanta-se, diga-se muito pouco, a bandeira da cultura, pois causa boa impressão, dá charme, mas nada de concreto acontece. Daqui a uns dias é uma bandeira rasgada num mastro qualquer. E depois, eu e mais alguns abaixo dela, lá tentaremos soprar as farripas que restam do pós-festa.
FN – Num ou noutro caso, coloca-se a questão: muitos equipamentos culturais da Região estão subaproveitados e, nalguns casos, configuram investimentos megalómanos, que apenas deram emprego a uns poucos privilegiados durante algum tempo. Acha que essa circunstância se manterá?
C.F. – Esse é um dos problemas que o futuro presidente do governo regional terá de resolver. Se o resolverá ou não, não sei, mas penso que Miguel Albuquerque, que só por milagre deixará de ser o próximo presidente do governo, não tem alternativa que não seja ser coerente com a imagem que cultivou e que os cidadãos têm dele. A cultura, deste ponto de vista, não espera nada de Albuquerque: exige-lhe que dê bom uso aos equipamentos existentes, megalómanos ou não.
E.C. – Recuso-me a aceitar que sim. Recuso-me. Ir, por exemplo, ao Centro ds Artes Casa das Mudas e lá deixar – dentro do que é uma das modalidades de utilização de algumas salas de espectáculo das Sociedades de Desenvolvimento – 50% das receitas de bilheteira que geramos, sejam as mesmas de 150 ou 1550 euros, não tem paralelo com nada que conheça! É atroz, insensível. É uma taxa arrasadora. Que todas essas fórmulas de Excel (elaboradas sem noção nenhuma do real) de obter receitas, que jamais cobrirão as despesas de algo que é, também, estado social, mudem, ou não acredito em mais ninguém que nos governe nestes sítios.
FN – O que gostaria de ver acontecer na Cultura da RAM nesta nova fase?
C.F. – Gostaria que o Funchal, que já foi, em tempos, umas das capitais culturais do país, recuperasse esse estatuto. E que a Região se afirmasse no plano nacional, não pelas suas peculiaridades políticas, mas pelo desenvolvimento de políticas civilizadas, incluindo uma política cultural que mobilize os cidadãos, mas que não deixe também de incentivar a criação de elites, nem de respeitar a autonomia dos agentes culturais.
E.C. – Há uns dias atrás, no ‘Australian Theatre Forum 2015’, Frie Leysen disse ser urgente que as artes sejam feitas para perturbar, não para agradar, que ninguém é ninguém para dizer o que é que as pessoas querem ver, disse ser urgente que os equipamentos e estruturas de apoio sirvam os artistas e não o contrário. Por isso, gostaria de ver totalmente redesenhada a política de apoios sustentados, ou subsídios, ou financiamentos, como queiram, absolutamente bem definida nas suas prioridades e critérios de atribuição dos mesmos. O fim dessa ideia do rumo à auto-sustentabilidade do que se sabe que só será auto-sustentável daqui a uns 50 anos se se investir a fundo perdido como se tem investido – e bem- na Orquestra Clássica da Madeira (que não é o União, nem o Marítimo, nem o Nacional), como também o fim da oferta de espectáculos à população madeirense (falo em acesso gratuito) com a ideia de que, só assim, um dia o povo terá noção de que deve pagar pelo acesso à cultura. Isto faz-se há mais de 30 anos! Não faz sentido nenhum. Gostaria de ver por terra o fim dessa noção de que uma Orquestra, um Museu, o belo tecto mudéjar da Sé, é mais importante que qualquer outra manifestação artística e profissional de palco. Poderia falar da importante distinção entre entretenimento e arte (que não é separação, é só distinção entre uma e outra), e da distinção entre os apoios às actividades profissionais e às amadoras (por cá todas misturadas). Gostaria de ver regras claras nos concursos promovidos pela DRAC, com júris com conhecimento de causa (no terreno e não só) dos proponentes – sejam estruturas ou artistas mais jovens e menos jovens – e das diferentes áreas a que se candidatam; nem que se imite e até podia ser melhorado o modelo Nacional a que os agentes locais não podem concorrer. Gostaria de ver os prazos definidos na atribuição ou não de determinado apoio, o fim da fórmula de contrato-programa a pedir contrapartidas acima do que é a razão pela qual se pede o apoio, etc. Gostaria de ver o fim do discurso de que se fazem gigantes eventos sem custos para o erário público –dos maiores logros que ouço por aqui. Gostaria que a fasquia não fosse nivelada por quem só pratica a sua arte ao fim do dia como hobby e não como profissão. No fundo, gostaria de ver acontecer aquilo que dizemos há mais de 30 anos, cada um de nós, à sua maneira, nas diferentes áreas o tem dito e já se fartou de dizer. E esse singelo desejo: que exista alguém que responda, responda sempre aos pedidos de fora e aos de dentro, mas responda, safa, nem que seja só com um lacónico acusar de recepção. Safa! Gostaria, por fim, que os meus pares (não tenho muitos na ilha, não tenho) dessem mais murros nas mesas – sem as partir – e, como eu, dissessem: basta! Ou então que, ao menos, escrevessem mais cartas, para memória futura (pessoais ou não, como eu tantas vezes escrevi aos responsáveis pela coisa pública da área que me toca), a dizer que fomos dizimados, sim, fomos. Sabe, e isto não é ironia das coisas, quem mais me respondeu, com palavras, um cartão pessoal ou actos, foi Alberto João. Não deu em nada, pontualmente, admito-o, ter-me-á salvado, e só assim tive a certeza – e ainda bem – de que há ainda, na Madeira, criaturas que determinam o que é cultura e arte e que se julgam donas das mesmas. Safa. Isto tem de acabar.