O “triatlo” é uma competição desportiva que combina, sequencialmente, três modalidades numa prova: natação, ciclismo e corrida, sem intervalo. A nível físico, deve exigir, imagino eu, treino quotidiano e um grande esforço. Adaptar o termo desportivo a uma actividade intelectual pode ser desafiador e foi o que aconteceu para o Concurso Nacional de Leitura, combinado com o concurso Triatlo Literário e o Baú de Leitura. A entidade madeirense Arquivo e Biblioteca da Madeira (ABM) tanto promoveu como organizou a fase regional, a fim de apurar, por cada ciclo e nível de ensino, quem representasse a Região Autónoma da Madeira (RAM), na fase nacional. No Funchal, as provas de 3.º Ciclo tiveram 15 concorrentes e as do Ensino Secundário contaram com 6. Participei no júri quer para o 3.º Ciclo, quer para o Ensino Secundário, ficando extremamente bem impressionada com a iniciativa e todo o trabalho que a equipa do ABM desenvolveu. A etapa final será realizada em Torres Vedras, no dia 03-06-2023. No ABM, serviu, claramente, para a promoção da leitura, através de um evento conjunto e, quanto a mim, lúdico, mesmo se levado muito a sério por quem concorre, tendo o acompanhamento das escolas (em especial docentes de Língua Portuguesa) e das famílias (pais, e avós também). Gostei de ver o interesse que os livros despertam, assim como o empenho de todos, particularmente a nível institucional, para a valorização da leitura. É mesmo o que uma biblioteca deve fazer porque guarda muitos livros para ler e consultar.
No meu entender, crianças e jovens que passam horas a ler serão, na fase adulta da vida, pessoas com grandes capacidades e vários conhecimentos. Será exagerado dizer que a leitura individual melhora a sociedade? As tecnologias são fundamentais no século XXI, embora eu acredite que os livros o sejam ainda mais. Quando, hoje, se observam pessoas sozinhas, seja onde for, comprova-se que têm diante dos olhos um telemóvel. Estarão a ler? Parece-me que estão mais a ver do que a ler. Não é o mesmo, apesar de a leitura exigir, em condições normais, a visão. Ler implica descodificar o que foi codificado, requerendo um conhecimento aprofundado do código linguístico (da língua em que o livro foi escrito) conjugado com elementos culturais e sociais. Nos livros, reencontramos o mundo que nos rodeia ou um mundo imaginário, repleto de fantasia. Quem escreveu teve, em princípio, uma intenção manifesta, ou não, e procurar compreendê-la na sua plenitude, quando se lê, é chegar à comunhão, fundindo o ler com o escrever, numa relação bilateral profunda. As escolhas de leitura foram várias para aqueles concursos e revi-me em algumas daquelas crianças. Os meus primeiros livros cabiam todos num saco de viagem e levava-os para qualquer lado: era mesmo uma biblioteca ambulante! Eram grandes e havia, essencialmente, contos com ilustrações belíssimas. Emprestei alguns que nunca me foram devolvidos e, nessas trocas, também houve alguns que nunca devolvi, pelas mais diversas razões. Aos que ficaram, adicionaram-se inúmeros outros e, nas últimas décadas, a maioria está relacionada com o meu trabalho. Hoje, estou a reorganizar a minha biblioteca que já não cabe num singelo saco de viagem. Quase sem espaço físico para arrumar livros, e tendo cada vez mais de ler em formato Pdf e “on line”, continuo a não ser fã de “e-books” ou livros digitais.
Para o Triatlo, trouxeram o livro escolhido em papel. Senti-me emocionada ao ver cada concorrente a defender a sua leitura, a sua opção, o texto, o autor, etc. Gostei muito de fazer parte deste concurso, que chamou redobradamente a minha atenção porque a leitura é um dos meus passatempos favoritos e as bibliotecas fazem parte da minha vida, desde que descobri que ler é um prazer. Passados muitos anos, tornou-se uma obrigação, já que o meu trabalho requer que, por exemplo, no fim de cada semestre, tenha avaliações para fazer e leia, por um lado, respostas a perguntas e, por outro, trabalhos que são elaborados em casa. Muita correspondência digital chega todos os dias e gasto um tempo precioso na gestão de mensagens que vêm dos quatro cantos do mundo. Há relatórios, dissertações e outros textos, em fase de elaboração ou já redigidas a ler, o que consome grande parte do meu tempo. Mesmo assim, sempre que posso, continuo a ler pelo simples deleite de ouvir uma história ou de entrar em vidas que me querem contar. A Literatura faz parte da minha vida. Leio diversos géneros textuais. Leio para aprender, descobrir, pensar. Entre o prazer e a obrigação, vou verificando que as leituras obrigatórias se sobrepõem às outras. Ao fim de semana, tento, no entanto, guardar uma hora, quando não disponho de mais, para fruir de leituras que não me foram encomendadas ou exigidas. Se perder o hábito de ler por prazer, que implica todo um processo linguístico, perderei o hábito de silenciar a minha voz para ouvir as que o livro, o texto, apresenta. O silêncio da leitura é fundamental. É vital para a sociedade não deixarmos de ler. Hoje, os telemóveis revolucionaram as nossas vidas e o colorido das imagens sobrepõe-se à mancha gráfica das palavras, mesmo se alguns livros também têm imagens. Eu gosto de banda desenhada. Aqui, nem coloco a questão do suporte do texto: se se prefere ler em suporte digital ou em papel. Aqui, pretendo, acima de tudo, valorizar a leitura como hábito linguístico, social e cultural que nos modifica por dentro, humanizando-nos. A capacidade de pensar continua a distinguir-nos enquanto pessoas de alma e coração. Ler é pensar! O que anda a ler?
Lemos de manhã à noite e muito mais do que pensamos, mesmo se não parece: a paisagem linguística da rua, cartazes de eventos ao ar livre, avisos afixados, comunicações de condomínio, ementas de restaurantes, jornais, revistas, legendas de programas de televisão, sms, mensagens nas redes sociais, rótulos de produtos aquando das compras, etc., etc. Não é dessa leitura que falo. Queria saber daquela que se lê intensivamente, por escolha própria, na maior parte das vezes, como a que as crianças e os jovens concorrentes trouxeram ao concurso do Triatlo no auditório do ABM. Naquele dia, várias foram as obras referidas. Houve autores estrangeiros e alguns de língua portuguesa. Alguém disse que todos os concorrentes mereciam ganhar e eram já vencedores. É, para mim, mesmo assim. Numa sociedade que transformou o lazer (música, dança, teatro, pintura, escultura, etc.) em ocupação com horário marcado, passou-se a desvalorizar o tempo de ócio propício à leitura. Quem tem tempo para ler com os milhares de afazeres que vai contando no dia-a-dia? Quem tem tempo para não fazer nada? Andamos sempre ocupados a fazer isto e aquilo, não é verdade? O que anda a ler?
Contrariamente ao triatlo, que contempla três modalidades sequenciais, eu mantenho uma modalidade (a leitura), mudando o material de leitura e é como se fosse uma prova diária e semanal em três fases. Há a primeira leitura, a de cariz prático e laboral: trabalhos escritos por estudantes, “e-mails” e documentação diversa. Conto uma segunda leitura, a das pausas e dos intervalos: os jornais para uma leitura em diagonal e, pontualmente, intensiva, além de uma obra de mesinha-de-cabeceira (O corrector automático do Word quer que eu escreva “mesinha-da-cabeceira”. Ora, o artigo definido “a” nesta sequência não me faz sentido. Não pretendo especificar “a cabeceira”. É preciso ter cuidado com estes correctores automáticos. A inteligência artificial não pensa!). Considero, ainda, uma terceira leitura: a intensiva para o trabalho, com reflexão e investigação.
Da primeira, não vale a pena falar. Consome-me horas e horas, dias e dias, embora não pareça. Quem ensina sabe do que estou a falar; quem não ensina dificilmente entenderá que esse trabalho exige dedicação, paciência em doses impressionantes e muitas pausas para não cair em depressão ou ficar com ansiedade. Neste momento de leitura utilitárias, designemo-las assim, o correio electrónico é, provavelmente, o que desgasta mais e consome mais energia. Chegam mensagens em inglês e português a exigirem muita atenção, muitíssimo trabalho, que não é para uma vida laboral, mas para três ou quatro. Tem de haver algum sentido de equilíbrio na gestão deste correio porque, se não for assim, não nos dará tréguas. Há sempre mensagens a cair na caixa. Neste momento, por questões laborais, faço a gestão de três caixas de correio. É como a chuva: a intensidade das gotas que caem pode ser fortíssima.
Quanto à segunda modalidade, surge nas pausas entre o trabalho da manhã e da tarde. É quando faço uma pausa para tomar café e passar os olhos pela imprensa local. Não perder a noção da realidade e saber o que os editores dos jornais regionais/ locais vão querendo divulgar. Na pausa do fim-de-semana, o maior intervalo que tenho, leio outros jornais e revistas. Como livros, ando a ler O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco nas primeiras horas matinais domingueiras. Muitos já o terão lido, mas eu, que já o queria ter feito, só agora o consegui. Estou, há meses, a acompanhar progressivamente a narrativa. Não foi fácil entrar nas entrelinhas e o tema dos Templários também não me absorve completamente, embora me interesse para compreender a ordem religiosa medieval que esteve na base da Ordem de Cristo, fundada pelo rei português D. Dinis. A versão portuguesa de O Pêndulo de Foucault que estou a ler poderá não contribuir muito para facilitar a leitura. Mesmo assim, já sorri e me ri com algumas passagens. Não vou desistir do livro, embora vá precisar de mais alguns meses para o terminar. Não faz mal! Ler é mesmo isso: requer tempo e é do mais bem empregue. Neste conjunto de segundas leituras, com um grupo de amigas, uma vez por semana, também faço uma leitura de grupo em voz alta para meditação. Os textos são espirituais, normalmente da autoria de Chiara Lubich, a fundadora do Movimento dos Focolares, e do Papa Francisco, que dispensa apresentações, revelando-se desafiador, pelas propostas concretas que vai fazendo para os cristãos do século XXI.
Relativamente à terceira modalidade, que envolve concomitantemente a escrita, entre consultas de diversas obras que tenho por casa – na tal biblioteca que fui construindo – e de textos científicos na Internet ou que me chegaram por partilha de leituras com colegas, ando a ler o livro intitulado Assim Nasceu uma Língua/ Assi Naceu u))))a Lingua: Sobre as Origens do Português da autoria de Fernando Venâncio e publicado pela editora Guerra & Paz. É uma obra extremamente interessante para quem se dedica ao estudo da língua portuguesa, ou melhor, para qualquer pessoa curiosa por essa área. A tese de Fernando Venâncio, que vai sendo documentada com um número impressionante de referências bibliográficas concretas, é que o português não veio do latim, mas do galego (este sim um romance latino). A designação “galego-português” e outras similares, nomeadamente “galaico-português”, foram criações. De alguma forma, remetem para José Leite de Vasconcelos. Ainda não finalizei a leitura que vou acompanhando com um lápis para múltiplas anotações. Evidentemente, esta tese não é a que prevalece, quando se estuda a História da Língua Portuguesa. No entanto, é tão merecedora de atenção quanto as outras todas. Está assente que se conta a existência escrita da língua portuguesa desde o Testamento de Afonso II, datado do ano de 1214, mas não acontece assim com Fernando Venâncio. Todos os linguistas sabem que uma língua, antes de ser escrita, é falada. Agora, considerar que o “português nasce” pelo século XV”, a partir de uma língua do noroeste da Península Ibérica é desafiador. Queria acabar a leitura o mais depressa possível. Porém, não tenho tempo “livre” para tal. É trabalho, é verdade, mas, primeiro, tenho de finalizar as leituras e as avaliações dos trabalhos dos estudantes. Talvez no mês de Junho consiga trazer a minha leitura de Assim Nasceu uma Língua de Fernando Venâncio! Temos de esperar para ver.
O meu triatlo literário-linguístico desenrola-se durante meses a fio, há anos. Se fosse à etapa final, a nacional, a Torres Vedras, no próximo dia 3, não sei se ganharia. Ganhe quem ganhar, a Madeira estará representada por duas jovens entusiastas leitoras. O que é mesmo importante é continuar a ler, seja por obrigação, seja por prazer. O que anda a ler?