Num livro publicado há cinquenta e cinco anos escrevi: «Caminho sobre a ponte/ vou devagar para o sonho.». E mais adiante voltei a escrever: «Que farei /destes breves momentos longos/ entre o dia e a noite?» E em resposta acrescentei: «Uma ponte que ligue à tua margem/ a minha impetuosa solidão». Eram tempos do fim da adolescência quando ainda não se tinha esgotado o uso da palavra sonho e o seu conceito traduzia o ímpeto com que se apelava para o desconhecido, imaginando que nele se continha toda a felicidade. Hoje a palavra sonho comporta algumas materialidades mas a luta pela felicidade continua a ser uma teimosia romanesca resultante dos atavismos da nossa condição. É, inevitavelmente, um lugar comum. No entanto, sabendo-se que a vida não é um percurso linear, mas um território acidentado, ser feliz é sempre um estado desejável apesar de ser um processo intermitente. Por uma tradição de alguns anos apenas, ela resumia-se a três palavras. «Tres cosas: salud, dinero y amor». A canção nasceu na Argentina no fim dos anos trinta, com sabor a tango, pela voz de Francisco Amor numa curiosa coincidência onomástica. Resumia alguns conselhos práticos e algumas advertências úteis que ainda hoje são válidos, mas levanta algumas questões na nossa era turbulenta. Crise após crise, a todos os níveis da convivência e da sobrevivência humanas, é o dinheiro o que mais sacode os ânimos e por ele se entra num processo acelerado de lutas desestabilizadoras do sossego das sociedades. Ter, ter, ter numa posse desenfreada de bens materiais, em detrimento de outros tão mais simples e benéficos para a saúde e o bem comum. Saúde e amor são na verdade bens inalienáveis. Não se trata de aceder a recursos moralistas, mas tão só de estar atento ao que se respiga de alguns textos de escritores creditados que muito contribuem para um esclarecimento global, se se tiver em conta o próprio fenómeno da «globalização».
Ser global ou procurar o solipsismo são dois extremos em que balança o sonho da felicidade. Pertencer a um destino comum, por um lado, ajuda-nos a ser presente no mundo que nos é oferecido e a usufruir dele; por outro lado, não se pode recusar o benefício da solidão que nos conduz ao pensamento próprio, sem andar a reboque de ideias feitas, impostas por modismos radicais.
É aqui que entra a utilidade da leitura dos autores humanistas que tanta falta faz aos homens de agora, desassossegados, preocupados com o futuro, como se o futuro fosse apenas um monumental mealheiro que é preciso encher, como fez a «Rã» da fábula, até rebentar de fartura.
Leia-se Edgar Morin a propósito da globalização: «para mim o problema da felicidade é subordinado àquilo que eu chamo o problema da poesia da vida» e cita a diferença entre o que se faz por encargo ou função para sobreviver e o que se faz para florescer, amar e comunicar. O que se deve às novas gerações mergulhadas em confusão e precaridade de existência é um novo tipo de educação que os ensine a «desarmar as armadilhas do conhecimento». Sendo a globalização um veículo de conhecimento é, simultaneamente, um bem e um mal e é necessário «desglobalizar a globalização», isto é, saber harmonizar o fenómeno, abolindo os excessos e aprendendo a despistar os erros e reconhecer e usar as estratégias de bem-viver.
O «problema da poesia da vida» é igualmente evidente para Eduardo Galeano que ilustra o seu modo pessoal de ultrapassar as intermitências negativas da existència com um pequeno relato que salienta a simplicidade e a pureza contra a afectação e a misantropia. Depois duma perda que o desgostou, Galeano foi para a rua de manhã procurando essa espécie de antídoto que se obtém inspirando o ar puro, absorvendo a genuinidade da Natureza e deparou com uma criança muito pequena que vinha na berma do caminho cumprimentando as ervas. «Bom dia ervinhas».
«Bom dia ervinhas» fê-lo pensar na grandeza da solidariedade e da comunicação espontânea que aproxima os seres em âmbito de interação pacífica e de expressividade poética. Esta criança, aparentemente sozinha, ao dirigir-se assim às ervas, realizava, a seu modo, o seu momento de felicidade. Não estaria só. Era esta a sua estratégia de abranger o mundo e de bem-viver. Diante deste cenário, Galeano considera a diferença entre grandeza e grandinha, segundo a sua expressão, distinguindo assim a magnanimidade da mesquinhez. Este simples acto de generosidade da criança levou o poeta a saborear também ali um momento de ser feliiz.
Clarisse Lispector é outra voz capaz de exemplificar como se «desarma o conhecimento». Eu acrescentaria como se desarmam os perigos da globalização. Estas vozes humanistas tão necessárias nestes nossos dias de degradação corrupção e vileza; de ansiedade e descrença nos destinos do mundo, em que a solidão e a sensação de abandono se encaminham para atingir a dimensão de catástrofe.
Diz Lispector contra tudo quanto possa agredir o seu direito de felicidade, ou seja a sua integridade humana: «Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma intenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva. Ela não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso o que se pode chamar de estar vivo. Não mais do que isto: Vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa. …O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande e isso é a sua realização. Sua coragem é de, não se conhecendo, no entanto prossegui».
Esta maneira de «ler» o mundo e superar a dor de existir, administrar a solidão e renunciar aos perigos dos modelos globalizantes é o modo supremo de construir a poesia da vida, a «Grande Ponte» para, de vez em quando, encontrar a felicidade.
Volto ao início deste artigo para justificar a escolha dessa canção dos anos trinta que pode funcionar como descongestionante das pressões que a todo o momento nos incomodam. Evoco muitas vezes as canções como uma arte de síntese, um ponto de encontro de todas as sensações humanas, através dos tempos e das sociedades. Não sendo uma arte do comum é, com certeza, uma arte comum a todos. Da conjugação de algumas canções populares com a voz sábia dos eruditos nasce a harmonia que é possível imprimir aos dias da incerteza.