A combinação de LÍNGUA-SOCIEDADE-CULTURA ou SOCIEDADE-LÍNGUA-CULTURA ou CULTURA-SOCIEDADE-LÍNGUA ou outra, alterando a posição de uma destas três vertentes deste conjunto tríptico, permite compreender o quanto estão intimamente interligados estes três pilares que sustentam o quotidiano humano. Há quem atribua grande parte das discriminações sociais e culturais à LÍNGUA. Eu não o considero assim e, quanto mais aprofundo o estudo linguístico, mais reconheço que a LÍNGUA é reflexo da SOCIEDADE e da CULTURA. Mudando a sociedade e alterando-se a CULTURA, a LÍNGUA acompanha as modificações ocorridas. Uma LÍNGUA tem material suficiente para dizer o que se pretende. Quando não tem, permite criar ou recriar a partir dos elementos já existentes. Formada por fones, fonemas, morfemas, monemas e outros elementos, dos menores aos maiores, é permitido moldar este material, ao serviço do ser humano, para poder dizer e escrever, a fim de, sobretudo, mas não só, comunicar com os semelhantes nas convivências diárias. Portanto, atribuir à LÍNGUA limitações e discriminações não me parece legítimo. Ouvi, ainda nestes dias, uma colega universitária afirmar que uma LÍNGUA “formatava o cérebro”. Eu não penso assim. Para mim, a LÍNGUA é libertadora: posso dizer o que quiser e como quiser. Posso ir, em pensamento e palavras, até onde a imaginação me levar. Há tantas possibilidades combinatórias! Se não quiser marcar o género com “Obrigada!” posso dizer “Agradeço!”, o que importa é manifestar gratidão, se pretender, educadamente, fazê-lo. Se eu não ficar satisfeita com as formas que existem, até posso inventar mais. A criatividade linguística é visível, por exemplo, nos nomes de lojas, no comércio, onde as possibilidades são em número sem fim. Uns nomes são mais originais do que outros, mas todos primam pela singularidade, procurando registar marca própria. Considerem-se, igualmente, as modalidades desportivas. Ultimamente, com “trail” (relacionado com “trilho”), vão aparecendo muitas combinações e uma das derradeiras é “ultra trail”. O “padel” (“pádel” ou “paddle”) é relativamente recente e não se confunde com ténis. Isto para referir apenas alguns exemplos. Poderia continuar porque são inúmeros os casos. Veja-se, no futebol, o “vídeo-árbitro”. No mundo da Informática, há uma quantidade considerável de invenções que são nomeadas das mais diversas maneiras. O verbo “monitorizar” vulgarizou-se com a existência de “monitor”. Cada ambiente social e cultural transporta consigo realidades e vivências que, linguisticamente, vão ganhando representação. Nasce primeiro a “coisa” ou o “nome”? O enigma é o mesmo do da problemática do ovo e da galinha.
Voltando ao que me interessa aqui. A LÍNGUA é instrumento de discriminação? Condiciona-me? Obriga-me a dizer de uma certa forma? Não me dá a liberdade de me expressar? Para mim, a LÍNGUA não é um espartilho. Pelo contrário, é maleável e libertadora. Contudo, para que assim seja, tenho de a conhecer e de a estudar para compreender como funciona e como está organizada. Não nego que seja um “código”, isto é, um conjunto estruturado de sinais, símbolos e regras. Porém, esses são os materiais e as ferramentas para a liberdade, podendo – é certo – também servir para a opressão. Tem os dois lados e depende da intenção de quem usa a LÍNGUA. Em função dos dois, a balança, dependendo de quem pesa, penderá mais para um lado do que para o outro. Por mim, será para libertar porque ela não me aprisiona, nem comprime, nem limita. A língua que falo não me estruturou o cérebro, o pensamento, a visão da realidade em que vivo, embora ela tenha nomes que a comunidade escolheu, que são de todos.
Na Paisagem Linguística, registam-se exemplos para o que acabei de referir. Vem isto tudo a propósito de um letreiro de uma casa de banho pública em ambiente citadino (cf. Fotografia “HOMENS SENHORAS), onde se contam duas “palavras”, dois nomes comuns no plural. A associação – o colocar lado a lado as duas, isto é, HOMENS MULHERES – não é a habitual. Embora haja um espaço em branco entre elas, posso acrescentar um hífen para indicar que se vai de uma para a outra e estão separadas (por exemplo: LIBERDADE-IGUALDADE-FRATERNIDADE ou FUNCHAL-PORTO). Quando pensamos “HOMEM”, também podemos pensar “MULHER”, como um par. No entanto, veja-se o caso em apreço, nem sempre é assim. Existe a liberdade para dizer de outra maneira. As duas palavras portuguesas têm significados diversos e as definições, que acompanham a evolução das mentalidades, vão dando conta dos sentidos concretos e, igualmente, dos figurados que adquirem, passando, por vezes, a designar outras realidades bem diferentes das iniciais. Isso demonstra o quanto o material linguístico é maleável, na língua portuguesa e, pelo que sei, em qualquer outra. Se, comprovadamente, existe a palavra “mulher” por que razão terão escrito “senhoras” a par de “homens”? Que mensagem quis transmitir quem foi responsável por aquela informação? Impõe-se outra pergunta. Por que motivo não terão escrito “senhores” em vez de “homens”? Estruturalmente, no geral, a nível social, cultural e linguístico, seria “homens-mulheres” ou “mulheres-homens” e “senhores-senhoras” ou “senhoras-senhores”. A opção linguística foi cruzar os dois pares de palavras, que, habitualmente, se ligam, quer no código linguístico, quer no social, quer no cultural.
Muitas casas de banho públicas são indicadas como “WC” (cf. Fotografia: há uma placa pequena com essa indicação, acrescentada, pelo que se deduz, posteriormente ao letreiro) ou “sanitários”, entre outras possibilidades linguísticas. Por variegadas razões, sobretudo para evitar as palavras, vão sendo representadas por desenhos. Em muitas casas de banho públicas, surgem ícones, nem sempre muito evidentes, para fazer a distinção bipartida entre sexo masculino-sexo feminino. Algumas passaram a incluir uma casa de banho para pessoas com limitações físicas e, até, integrar espaços destinados a adultos com crianças. No entanto, quem concebeu o letreiro em azulejo, elemento da Paisagem Linguística na cidade, decidiu, livremente, alterar os pares e não fazer como se esperaria. Porquê? O que motivou aquelas duas palavras? Tratando-se de uma casa de banho, o assunto é do domínio da intimidade. O espaço é dividido em duas casas de banho, tratando-se de um espaço partilhado, sendo uma parte para “homens” e a outra para “senhoras”. O registo escrito prescindia da referência à casa de banho em si (depois adicionado), fixando-se unicamente na repartição divisória por sexos: os “homens” de um lado e as “senhoras” do outro. Não há nada de mais privado do que uma casa de banho. A própria interligação, em associação, de “casa de banho” a “pública”, quando é do domínio do “privado”, é muito interessante a vários níveis. Há mais de trinta anos, na Austrália, numa longa viagem de carro, mostraram-me, aquando de uma paragem na Natureza, uma casa de banho, “natural”: um buraco dentro de uma casota de madeira, sem qualquer modernidade. Não havia papel, água, sabão, toalhas, toalhetes ou outros elementos culturais modernos. Era pública e semelhante a uma que conhecera, em época de férias, uns bons anos antes, num ambiente rural, na zona da Beira Alta. Em ambas, tudo ficava na terra. A australiana era pública porque em espaço público e a portuguesa era privada, já que se localizava num terreno privado.
Culturalmente, nas casas, antes de haver água canalizada e esgotos, toda essa realidade era diferente de hoje. A própria designação de “banho” a determinar “casa” levaria a pensar na lavagem do corpo como os banhos romanos ou os turcos. O “duche”, com o chuveiro, tem vindo a substituir o banho de imersão. A nível cultural, estando-se numa fase de sustentabilidade e de preservação da água – um bem essencial à vida – é recomendado gastar cada vez menos água. Há mesmo autoclismos (palavra curiosa) para descargas maiores ou menores. Em Timor-Leste, seguindo a tradição da Indonésia, vi, em Díli, o que corresponde àquilo que designamos por “casa de banho”. Nesse espaço, há um tanque com água onde não se entra, como nas banheiras. Rentabilizando o recurso natural, é de onde se retira água com um género de caneca para a higiene diária. A cultura muda em função de vários factores. Existe toda uma realidade de coisas e de palavras para pensar a higiene pessoal e as necessidades fisiológicas. Em França, a grande maioria das casas separa as duas vertentes – higiene et necessidades fisiológicas – em duas divisões: uma, maior, é a “salle de bain(s)” e a outra, por vezes bem pequena, é os “toilettes” (também “cabinets” ou “petit coin”), não misturando os dois momentos humanamente imprescindíveis para a saúde e a vida. Em Portugal, as casas de banho, ainda hoje, incluem “bidet” (etimologicamente do francês: “pequeno cavalo de sela”), que, em França, não é habitual encontrar. A cultura do corpo, da higiene, das necessidades fisiológicas e tudo o que se lhes associa merece estudo, tendo, ao longo dos séculos, sofrido várias mudanças que se vão repercutindo nas línguas. No Solar do Aposento, na Ponta Delgada, no Norte da ilha da Madeira, vi dois exemplares singulares de objectos – ligados a essas realidades – camuflados (escondidos) em móveis que estão discretamente no quarto, junto à cama.
Hoje, na década de 20 do século XXI, por questões de identidade, género e não discriminação, discute-se se as casas de banho devem ou não ter a diferença de sexos, sobretudo nas escolas, mas não exclusivamente aí. A mim, dá-me que pensar. Acaba por ser um tema de linguagem relacionado com a sexualidade. O assunto envolve a associação tripartida LÍNGUA-SOCIEDADE-CULTURA e não forçosamente por esta ordem de ideias. Na sociedade ocidental, o olhar do homem sobre a mulher tem vindo a mudar, mas continua a haver alguma desconsideração. A violência, tanto a dita “doméstica”, como a pública, ainda está ligada às mentalidades. Em casa, é habitual partilhar a casa de banho. Algumas casas têm, no entanto, casas de banho de serviço, para visitas, havendo uma separação. A sociedade portuguesa segue de perto a visão que se encontra no mundo ocidental democrático. Contudo, a casa de banho, mesmo pública, é do domínio do privado. Depois, há as intermédias, as dos centros comerciais ou dos cafés e restaurantes, por exemplo, que, de alguma forma, têm os dois âmbitos, sendo “público-privadas”. Muito acontece nesses espaços, que podem ser mais ou menos limitados, e há filmes – o cinema é pródigo nisso – que retratam cenas diversas ocorridas em casas de banho, simultaneamente lugares fechados e abertos. Não sei se já foi feita a história das casas de banho e, em especial, das casas de banho públicas, no mundo, em Portugal, no arquipélago madeirense. Eu tenho andado a observar a forma como elas vão sendo designadas, isto é, como vêm identificadas e representadas. Que código seguem?
Volto a “HOMENS SENHORAS”. A reflexão linguística, com evidentes relações sócio-culturais, parece que leva a divagar. Contudo, demonstra bem que tudo se interliga. O letreiro não é recente, encontrando-se na paisagem urbana há muitos anos, sem que se lhe preste grande atenção. Funde-se com o meio envolvente. Terá, penso eu, mais de cinquenta anos, embora esteja muito bem conservado. Sempre que passo junto ao lugar, coloco-me a questão: Porquê “senhoras”, se poderia ser “mulheres”? Porquê escolher “homens” e não “senhores” ou “cavalheiros”, como também já vi em algumas casas de banho? Para ter uma resposta precisa à questão, implicaria perguntar a quem fez a escolha da sequência das duas palavras. Como isso não é viável, resta-me especular, pensar, mantendo-me, porém, no âmbito da LÍNGUA, mesmo se interligada com SOCIEDADE-CULTURA.
A nível linguístico, “senhora” e “mulher” não são sinónimos, nem se usam nos mesmos contextos, mesmo se se podem considerar equivalentes. Entre muitos usos, observem-se alguns. O primeiro vocábulo ocorre em saudações (Bom dia, minha senhora!) e é uma forma de tratamento (A senhora está satisfeita com o carro?), podendo ser um nome comum (A senhora do terceiro andar saiu cedo.). O segundo é mais usado como nome comum (Aquela mulher passeia o cão, pela manhã.) ou como sinónimo de “esposa” (A mulher do Carlos é cientista.). Ambos podem ser empregues como vocativos (Ó senhora, preste atenção!/ Ó mulher, presta atenção!). Fiz variar a pessoa gramatical e o nível de língua porque senti que os usos linguísticos – sociais e culturais – predominantes se inclinam para esse lado. Parece-me ser formal e cuidado para “senhora” – 3.ª pessoa do singular – e informal e pouco cuidado para “mulher” – 2.ª pessoa do singular. No entanto, também pode haver outra perspectiva (Ó mulher, preste atenção!). Esta diferença linguística mereceria reflexão aprofundada. O uso de “mulher” ocorre em situações de comunicação em que é determinado por outros elementos, nomeadamente “da vida” ou “da má vida”, para não pensar em “vivida” ou noutras possibilidades. Aqueles dois casos – “mulher da vida” e “mulher da má vida” – remetem para “prostituta” (novamente o tema da sexualidade). Esta poderá ser uma das razões pelas quais, no letreiro, não figura “mulheres”. Aquela casa de banho é aconselhável, digna, não sendo local “mal” frequentado. Uma “mulher de bem”, “uma senhora”, pode estar tranquila naquele espaço: é unicamente uma casa de banho. A mensagem é dirigida a todos, mas de modo particular às mulheres em geral. O nome “homens” não chama a atenção. Não coloca qualquer problema, apesar de a mensagem também lhes ser destinada. A questão estará do lado das “mulheres”. Aquele espaço não é para “mulheres [de má vida]”. As casas de banho, sobretudo as públicas, também têm uma reputação a defender, podendo, ou não, ser aconselháveis. A escolha linguística de “senhoras” não terá sido involuntária. Pelo contrário, foi certamente pensada e ponderada. Obrigar a pagar o uso de casas de banho públicas é uma medida para que não se degradem a vários níveis e, aí, há uma para qualquer pessoa que necessite dela. Mesmo assim, nem sempre afastam situações pouco recomendáveis. Social e culturalmente, a casa de banho pública cumpre uma função de apoio. No entanto, algumas são muito mais do que isso. Muitas têm portas e paredes integralmente escritas a várias mãos com insultos, palavrões, declarações de amor, de ódio, de paixão, de ciúmes ou outros sentimentos. Há desenhos em que a sexualidade se revela problemática. A linguagem da sexualidade presente em casas de banho públicas evidencia o quanto “mulher” e “senhora” podem ser palavras distintas a nível valorativo. Do ponto de vista de quem concebeu o letreiro, num grau mais baixo, figurará “mulher” e, num nível bem mais acima, “senhora”. Linguisticamente, todavia, as referências estão próximas: as mulheres são senhoras e as senhoras são mulheres. O letreiro foi, decerto, concebido por homens. Julgo que nenhuma mulher se lembraria de colocar numa inscrição “senhora”, reportando-se a si própria.
Exagerarei ou isto tudo é matéria para pensar e analisar a língua, a sociedade e a cultura? As mentalidades e as vivências podem ser estudadas através da língua, da Paisagem Linguística. Andar pela cidade e observá-la é saber como se organiza a sociedade e conhecer a cultura. Muitos letreiros são vestígios de um passado e outros revelam as problemáticas do presente. Vou continuar a prestar atenção para saber como se vão relacionar as coisas e as palavras ou as palavras e as coisas porque LÍNGUA-SOCIEDADE-CULTURA, pegue-se-lhes por onde pegar, são, quanto a mim, indissociáveis e não me limitam a liberdade. A língua que falo não me “formatou o cérebro” e as que aprendo também não. Servem para pensar, analisar, descrever, comparar e estudar.
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Helena Rebelo – Professora universitária na UMa